Um papo com o monstro
Vinicius Paes
O escritor gaúcho, radicado no Rio de Janeiro, Paulo Scott acaba de lançar o seu novo romance pela editora Alfaguara. Segundo romance de uma premiada carreira, "Habitante Irreal" é ambientado no Brasil de 1989 e trata de várias histórias girando, mútua e ordenadamente, em torno de um único eixo: "a história de uma mulher forte", como diz o autor.
Formado em Direito pela Pontifícia Universidade Católica (PUC-RS) e Mestre em Direito Público pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Scott deixou a carreira de advogado para se dedicar integralmente a literatura. Em 2001, lançou seu livro de estreia, "Histórias curtas para domesticar as paixões dos anjos e atenuar os sofrimentos dos monstros" (2001), publicado sobre o pseudônimo de Elrodris.
Scott é também autor do romance "Voláteis" (com o qual foi considerado "revelação do ano", em prêmio concedido em 2005 pelo Governo do Estado do Rio Grande do Sul); do livro de contos "Ainda Orangotangos" (que ganhou adaptação para o cinema por Gustavo Spolidoro, em 2008), e dos livros de poemas "Senhor Escuridão" e "A timidez do monstro" (2006).
Essas obras representam cada um dos monstros que habitam o irreal espaço da mente de Scott, fazendo dele um dos maiores escritores contemporâneos. E é sobre seus monstros, sua obra, seu novo romance, literatura e outros assombros que Scott discorre nesta entrevista, feita por email. Confira:
O que é o "Habitante Irreal"? Poderia contar um pouco sobre o seu novo romance?
Embora existam muitas histórias se combinando, a principal (o eixo-central) é a de uma índia de catorze anos, Maína, vivendo num acampamento a beira da BR-116 com a mãe e as irmãs por não haver mais lugar na aldeia onde moravam. Como quase todas as minhas histórias esta se constrói em torno da figura de uma mulher forte. Maína está presente em cada página do romance, ela aglutina os quatro narradores que contam a história, cada um com o seu capítulo, embora sob um pacto de manter certa similitude narrativa. Há outras mulheres fortes na história (Luisa, Rener, Catarina), mas é Maína quem prevalece.
É, também, um livro que faz uma forte crítica à esquerda política que se constituía na época, não é?
Pode parecer uma crítica mais contundente a respeito do projeto da esquerda brasileira, um projeto que naufragou pelas próprias mãos de seus articulistas, de seus títeres, e titereiros, mas não. É bem mais do que isso (acho que alguns leitores se impressionam porque muito pouco se disse sobre esta minha geração, que é a geração que está no poder, como se fosse impossível arriscar cenários e críticas). Não pensei muito a respeito, não sob esse prisma. O que há então? Há as personagens e há uma história que ganha volume e densidade a partir do que é preciso mostrar quanto às idiossincrasias dessas personagens. Há muitas piadas internas e estruturas estéticas (de narrativa e não de linguagem) sugeridas também.
Em "Habitante Irreal", uma das personagens é um jovem estagiário em Direito, com convicções políticas esquerdistas, de nome Paulo. Qualquer semelhança com a realidade é mera coincidência?
Sim, sempre. O livro não é confessional. Paulo condensa o modo de uma geração, um modo que até parece sem sentido hoje, de tão arriscado e impulsivo que foi. Aquela geração foi uma geração desesperada por liberdade, ansiosa por mudar o mundo, uma geração que desprezava palavras como destino, determinismo, receio. Não fui nem tão corajoso, nem tão louco e nem tão ingênuo quanto o protagonista. Tive uma carreira sólida no Direito até, e essa carreira durou até o momento em que decidi virar escritor por tempo integral; em relação à política, bem, meu rompimento com a militância de esquerda foi bem posterior, em termos de idade, a de Paulo, o Paulo do livro. Apóstolo Paulo: o político.
Paulo Scott é um escritor contemporâneo ou vanguardista?
Para ser vanguardista (para se projetar como vanguardista) é preciso ter um discernimento e uma erudição literária que eu não tenho, meus embates e por consequência os meus trabalhos, acertos, falhas, se acomodam na zona estrita do que li, do que me impressionou, do museu acumulado por meio do olhar de leitor, do meu olhar de leitor, das dúvidas, das releituras. A tentativa de não replicar (não imitar) enquanto premissa de revisão e certeza da direção daquilo que escrevo, produz o que tenho chamado de humor ilusório necessário, conduz a criação ao encontro do que pareça novo, embora não seja. Esse tipo de cegueira, de lutar contra a própria cegueira, dentro da própria cegueira, esse ímpeto, tem razão de ser principalmente quando já não há euforia de estreia, posso garantir que no meu caso já não há, quando se dedicar à literatura (aqui entra minha condição de leitor também) é só o que faz sentido.
De outro lado, e tentando não me perder aqui, sou contemporâneo na medida em que ignoro, em que sou ignorante, quase tudo a respeito do modelo que prevalecerá como amostra identificadora destes dias; a distância gerada por essa, talvez, despreocupação ou ausência de recursos para de fato entender e palpitar e se preocupar com proficiência me traz uma liberdade que facilita bastante o processo criativo. E nisso transito. Leio muito os meus contemporâneos brasileiros e os estrangeiros também, suas visões e intenções confirmam a minha vontade de chegar a uma voz própria. Não exatamente um método de negação, antes um roteiro para montar a minha atualidade, a minha inconstância amplificada (e ampliadora) a partir de muitas e diferentes posturas, formas, conteúdos, erros e teimosias, sobretudo.
Você disse uma vez que é um leitor muito mais dedicado à poesia do que aos romances. Isso reflete no seu ofício de escritor? Embora esteja lançando um romance, no momento...
Não estabeleço distinção hierárquica entre os gêneros literários (isso em qualquer plano). Sei é que adoro comprar livros de poesia de lê-los sem pressa. As novas sintaxes, a nova linguagem. Gosto de pensar que a prosa ocupará a maior parte do meu tempo, mas com a poesia sou compulsivo, escrevo todos os dias, é um processo quase involuntário. Meu fascínio pela linguagem, pela inovação da linguagem, como já sugeri outras vezes, é a razão disso tudo. A poesia sempre foi e sempre será o grande parque de diversão por mais custoso e demorado que, com o passar do tempo, seja para produzi-la (lendo ou escrevendo).
Há muita diferença no processo criativo, entre poesia e romance?
No final das contas, não. O tempo de envolvimento é que pode variar. Os limites a serem superados são diferentes. O sentido da narrativa tem um peso que não pode ser afastado quando se trata de romance; um poema pode se sustentar mais facilmente apenas na linguagem, ainda assim precisa contemplar algum tipo de coerência. Encontrar, fundar essa coerência, num contexto autopoético, até. Nisso está o grande desafio, em minha opinião.
Ao ler "Senhor Escuridão" e, em seguida, "A Timidez do Monstro", tive que reler "Senhor Escuridão" o que me forçou a reler "A Timidez do Monstro", o que criou um ciclo vicioso no qual eu pude ver uma ligação vital entre as duas obras. Afinal, existe uma dependência substancial entre estes dois livros?
Por certo. A dependência, essa dependência substancial que você percebe muito bem, se estabelece em todo texto poético que produzo. Mesmo que eventualmente pareça prosa, a mecânica que se desencadeia a partir do momento que decido escrever tem chancela poética, os objetivos são outros, o cenário sempre é de guerra. Há uma forma não datada, o desconforto do primeiro momento de percepção e síntese pessoal da arte, do que poderia ser arte e o seu oxigênio. E tem a figura do monstro, que é vulgar e desgastada, mas importante pra mim. A figura do monstro é recorrente na minha poesia, há uma ancestralidade mal entendida nessa tônica, um dia vou conseguir explicar melhor.
Qual a sua visão sobre a poesia brasileira contemporânea?
Um número grande de jovens poetas escrevendo com fôlego e virilidade. As meninas com dicção gay são as que mais me impressionam.
E, o que é a poesia, verdade, mentira, ou o meio termo entre as duas coisas?
Não sei direito o que é a poesia, sério. Sei apenas que a poesia é o gênero que exige mais do leitor.
Ainda há espaço para rebeldia?
Mais do que nunca.
Mas qual rebeldia?
Na sedimentação da própria rotina. Espaço há, detectá-lo sempre foi tarefa difícil, não entrar em consenso consigo e com as turmas, os clubes, desconfiar. Não é o melhor momento pra falar sobre isso - o que sei é que a resposta sensata neste momento parece ser essa que de: mais do que nunca, comece a procurar no espelho.
Pra finalizar, sobre o leitor Scott: Drummond, Leminski ou Piva?
Roberto Piva, mas admito: ser leitor de Drummond é embarcar num túnel interminável, e de Leminski guardo a leitura que me fez perder a vergonha de querer me tornar um poeta.
Sobre o escritor Scott: poesia, contos ou romance?
Não consigo dividir os gêneros com propósito de hierarquizá-los. Sei que tenho dois romances para terminar enquanto isso as poesias se acumulam nas gavetas. Contos eu os tenho feito à medida que surgem as encomendas, mas tenho recusado quando o prazo é curto.
Você é senhor ou escravo do teu monstro?
Sócio minoritário.
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Vinicius Paes é estudante de jornalismo na Uniso e realizou esta entrevista pela Agência Experimental de Jornalismo da universidade