CULTURA

Carnaval


Quase um ano de coluna transforma o autor destas linhas em bicho bastante previsível. Os leitores reconhecem quando estou de humor mais ameno. Também percebem quando estou irritado. Curioso que até hoje me surpreendo quando alguém comenta "as fases" da coluna. Confesso que não planejei tais ciclos.
No último final de semana, no estacionamento da padaria, um leitor disse saber que a coluna de hoje seria sobre o Carnaval. Dei aquele risinho de quem é pego no pulo.
Será sobre Carnaval. Mostrará que não gosto de certas coisas que acontecem nos dias de folia. Terá, porém, um quê positivo mais para o final. Tento, a partir de agora, equilibrar os dois pratos.
Os leitores conhecem meus problemas com o calor. Acordo cedo, arrumo-me para o trabalho e já sinto o peso de um piano nas costas. A camisa recém-vestida já ameaça colar-se ao corpo. E pensar que terei seis aulas no primeiro turno da jornada. Os alunos também sofrem. São muitas as situações em que o calor é maldição. Nada como um dia de sol forte para macular meu humor.
Calha de o Carnaval ser no pico da quentura. Aquele mormaço que nos faz pensar mais a sério no aquecimento global. Já seria o suficiente para termos um cenário de pesadelo. Mas eis que surge o homem com a sua belíssima capacidade de piorar as coisas.
Começa com o tal "grito de Carnaval", expressão que reúne duas das palavras que mais abomino. Grito, qualquer grito, me irrita profundamente. Algo bestial, sei lá. Não é à toa que me identifico com dois mestres de voz contida: Nancy Kaplan e Saulo Nicolau. Tratemos agora da outra palavra da expressão.
Talvez o Carnaval tivesse lá o seu encanto nos idos do início do século XX. Aquela coisa meio traquinas de jogar confete nas moçoilas de antanho. A criançada fantasiada, olhando extasiada para o cotidiano alterado. Leio com prazer relatos e contos dessa época pregressa. Há, inclusive, um excelente conto, se bem que bizarro ao extremo, ambientado nesse cenário: "O bebê de tarlatana rosa", de João do Rio. O problema está, meus caros, no aqui e agora.
A música de estourar os tímpanos. Músicas horrorosas. Lixo mesmo. Nem entro em muitos detalhes. Porcarias dessa natureza estão condenadas ao olvido. Só quero deixar claro que não concordo com essa mania besta de achar que isso é cultura. Há maneiras e maneiras de se entender a palavra cultura. Há a antropológica, que considera cultura tudo aquilo que é produzido em determinada época pelas pessoas. Há, também, algo que diz respeito ao julgamento de valor, e refere-se àquilo que de melhor é feito pelo homem ao longo dos séculos. Fico com o segundo entendimento. Precisamos sair desse labirinto que é o relativismo.
Calor estúpido, música mais estúpida ainda. Surgem, então, os grotescos abadás. Tenho lá meus problemas com camiseta regata. Talvez eu possa colocar a culpa no fato de nunca ter tido um corpo esculpido por academias, suplementos alimentares e horas de enleio diante de espelhos. Muitas podem ser as explicações. De qualquer modo, fico com o que sinto hoje: camiseta regata, nem em casa. Idem para chinelos.
Calor maldito, música hedionda, indumentária repulsiva. Surge, então, o auê forçado. Precisamos pular que nem doidos no Carnaval. Pobres moças que precisam andar por aí com aqueles saltos de filme futurista! E o sorriso permanente. E os abraços suados. E o galã ao lado louco para dar o bote na sua patroa. Impossível não ter os nervos em frangalhos. Depois não entendem como sai tanto briga nessa época.
Arriscado pegar o carro nos próximos dias. Já tem sido difícil fazer isso em dias normais (normais?). Multiplique por cem o risco. Resultado: a chacina dos acidentes nas cidades e nas estradas. E sabemos que vai acontecer. Resta saber se os números superarão ou não os do ano anterior. É o elogio do suicídio.
Desci a lenha no Carnaval. Passo, talvez, a imagem de antipático. Não tem problema. Passo agora ao lado bom dos dias que estão chegando. E tem a ver, lógico, com leitura.
Ótima oportunidade para as leituras que gostaríamos de fazer. É trancar-se no quarto e empilhar os livros ao lado da cama. São poucos dias, eu sei. Mas é o bastante para rompermos com a imbecilidade reinante. Às vezes me perguntam por que leio tanto. Respondo: para ficar menos burro.
Mui humildemente, sugiro a leitura de um livro magrinho de poesia: "Poemas", de Wislawa Szymborska. Saiu recentemente pela Companhia das Letras e tem uma das capas mais interessantes que já vi. Em 2012, comemoramos o centenário de Carlos Drummond de Andrade. Talvez valesse a pena ler, junto com o poeta brasileiro, essa espécie de irmã polonesa de poesia. Para aguçar a sanha do leitor, transcrevo um dos poemas da grande Szymborska. O título é "O terrorista, ele observa":
"A bomba vai explodir no bar às treze e vinte./ Agora são só treze e dezesseis./ Alguns ainda terão tempo de entrar;/ alguns de sair./ O terrorista já passou para o outro lado da rua./ A distância o livra de todo mal/ e a vista, bom, é como no cinema;/ Uma mulher de jaqueta amarela, ela entra./ Um homem de óculos escuros, ele sai./ Uns jovens de jeans, eles conversam./ Treze e dezessete e quatro segundos./ Aquele mais baixo tem sorte, sai de lambreta,/ e aquele mais alto entra./ Treze e dezessete e quarenta segundos./ Uma moça, ela passa de fita verde no cabelo./ Só que aquele ônibus a encobre de repente./ Treze e dezoito./ A moça sumiu./ Se foi tola de entrar ou não/ vai se saber quando os carregarem para fora./ Treze e dezenove./ Parece que ninguém mais entra./ Aliás, um gordo careca sai./ Mas remexe os bolsos como se procurasse algo/ e às treze e vinte menos dez segundos/ ele volta para buscar a droga das luvas./ São treze e vinte./ O tempo, como ele se arrasta./ Deve ser agora./ Ainda não./ É agora./ A bomba, ela explode."