A irreverente e questionadora sombra
José Milton Castan Jr.
Fim de tarde. Saindo do prédio de seu escritório, Jô, após mais um dia maçante de trabalho, atravessava a praça central e pouca pressa. Olhou para a igreja matriz, a mesma que havia se casado, e pensou que chegar em casa tão cedo não parecia melhor opção, pois há mais de mês vinha entravado na relação com Dora, sua esposa. Aliás, há mais de mês que se sentia um tanto preocupado. E não era para menos, vez que além de Dora, sua empresa, uma importadora, sofria com os atrasos para liberação na alfândega de um pedido do seu principal cliente, que já havia sinalizado: ""ou resolve ou cancelamos o contrato"", sendo que tal mantra rondava sua mente a maior parte do dia.
Não quero aqui, dileto leitor amigo, ser vetor das querelas matrimoniais entre Jô e Dora, e nem serei, mas com o único desejo de aclarar: Dora andava reclamando da maneira rude e distante que vinha sendo tratada, bem como a velha mania de impor regras e ditar normas. Por sua vez, a última moda de Dora desejando voltar trabalhar, bulia os pensamentos de Jô. Não era contra, mas haviam acordado assim. Talvez pardas incertezas de Jô, quase apagadas pelo tempo.
Jô caminhava pela praça sentindo o sol daquela tarde de inverno aquecer suas costas. Olhava desatento a evolução da sua sombra à frente refletida no chão acompanhando o seu caminhar. Escutou o som do sino da catedral informar que passava meia hora desde as cinco da tarde. Curiosamente e ao mesmo tempo da única sonora badalada, passou a pisar em sua própria sombra. Primeiro um passo sobre a canela esquerda, outro na coxa direita, um na barriga e quando ia pisando na cabeça, estancou!
Deu um passo atrás e sua sombra permaneceu imóvel sobre o piso da praça. Levantou a cabeça como que procurando alguém, e não havia nenhuma interferência. Lentamente deu mais um passo para trás, e depois mais um. Nada. Ficou em choque quando arriscou uma leve pernada para a direita e sua sombra irritantemente estática. Um pulo... agachou..., nem um sombrejado movimento. Olhou para o lado e achou que alguém poderia estar espreitando. Dissimulou e bem devagarzinho posicionou seus pés, exatamente sobre os pés da sombra. Esperaria o movimento do sol. Vinte minutos, o sol avançou pelo horizonte, mas sua sombra o desafiava.
Deu de ombros. Iria embora, que se dane a sombra. Saiu andando pela praça e menos de quatro ou cinco passos, voltou.
Teve uma ideia: olhou para a mão sombra, ajustou a sua própria como se estivessem de mãos dadas. Concentrou-se e tentou puxar a sombra. Soltou um palavrão.
Jô além de ter um porte alto e forte, o que lhe dava um ar imperioso, tinha também umas ideias de grandeza, e por isso mesmo não gostava que lhe dessem ordens, assim é que se rebelou contra sua sombra. Pensava: ""como uma sombra pode me controlar?"" Então notou que começava anoitecer e sua sombra foi vagarosamente desaparecendo. Sentiu-se livre e foi para casa.
Pouco falou com Dora. Noite buliçosa. Uma noite e mil pensamentos.
Como um lobo homem, temeu pela luz da manhã. Abriu a janela, e esperou ver sua sombra dentro do quarto iluminado. Desesperou-se. Vestiu-se e saiu sem dizer nada e só parou quando encontrou na praça, sua sombra e na mesma posição.
O dia foi avançando, marcado pelas badaladas do sino da matriz. Parecia que todos o olhavam e talvez o achassem louco. As badaladas conferiram meio dia. Exausto e com fome começou sentir uma pressão no peito e sua sombra estática obrigando-o ficar ali. Sentiu-se zonzo. Ouviu uma voz familiar. Olhou para a sombra e pela primeira vez notou que ela movimentava a cabeça. A voz vinha da sombra. Era chegada a hora! Começou então um longo, tenso e silencioso diálogo.
- Por que e para que? - perguntava sempre a sombra. Algumas vezes Jô respondia de pronto, outra demorava mais e por fim não encontrando melhor resposta, apenas refletia. Teve efeito: Jô escutou mais uma badalada, mas não sabia de qual meia hora era. Saiu caminhando e sua sombra o acompanhou. Seus ombros pareciam relaxados. Resoluto, decidiu não ir trabalhar, iria para casa e daria um amoroso beijo em Dora. Talvez saíssem para um sorvete na praça.
José Milton Castan Jr. é psicanalista e escritor - www.psicastan.com.br