O Debate
José Milton Castan Jr.
? Nicou.
? Não Nicou.
? Nicou!
? Não Nicou!
Atracaram-se. Rolaram pelo chão. Eram vizinhos. Os dois com oito anos. Xingavam-se aos gritos
? Filho disto!
? Filho daquilo!
As duas mães citadas correram para ver o que estava acontecendo. Separaram os dois, que choravam de dor e raiva. As mães tiveram que segurar os dois com força e levá-los. Senão a briga recomeçava
? Nicou!
? Não Nicou!
Nunca mais jogaram bola de gude. Nunca mais brincaram juntos. Quando um deles mudou de casa, botou a cabeça para fora do carro e gritou para o que ficava:
? Nicou!
O acontecido acima foi-me relatado por um dos melhores cronistas brasileiros - Luiz Fernando Veríssimo. Apenas depois deste relato que pude entender o que aconteceu naquela fatídica noite do dia 26 de agosto:
Faltavam menos de quinze minutos para iniciar o debate em rede nacional de televisão entre os dois candidatos à eleição presidencial. O clima, claro, estava tenso. Era conhecida a rixa entre um e outro, que supostamente havia começado na disputa para vereador da cidade. Na primeira eleição um elegeu-se com recorde de votos, o outro ficou em segundo. Quatro anos depois se inverteram as posições. Nas duas legislaturas, a disputa por maior número de projetos resultou rigorosamente igual, devido à manobra, um tanto contestada pelo outro, nos últimos minutos do fim do mandato. Ambos foram governadores, cada um ao seu tempo e sempre acusando o outro. O segundo implodiu uma ponte construída pelo primeiro, para elevar em seu lugar uma maior e mais segura.
Agora chegavam para a disputa máxima. Porém apenas suas mães sabiam do verdadeiro motivo que empurrava e puxava suas ideias e ideais.
Os preparativos haviam sido meticulosos. Nenhum detalhe deixado de lado. Tabelas, gráficos e estatísticas foram rigorosamente decorados. Cada um estudou todas as possibilidades de respostas, para qualquer questionamento. Ambos tiveram aulas de retórica e havia inclusive em suas respectivas equipes um "personal stylist".
Começa o debate. Palavras colocadas com extrema maestria. Um falou do PIB que iria obter ao final do primeiro ano. O outro não relutou, e para surpresa de seus assessores, aumentou um ponto porcentual. A cada posição marcada por um, correspondia décimos a mais pelo outro.
No intervalo do primeiro bloco para o segundo alguém falou algo como: "está tudo muito plástico, mostre mais autenticidade".
Começa o segundo bloco. A disputa segue intensa e começam a dar sinais que a tensão aumentava geometricamente. Os esperados ataques verbais já se encontravam no limite do aceitável. Passam-se a acusar. Gotículas de suor surgiram em ambas frontes. Um gesticula de forma que o outro entende como provocação. O outro fala sobre projetos na área de esportes e dá entender que a proposta de seu oponente não serviria nem para jogar bolinha de gude!
Ambos param de falar, entreolham-se. O silêncio é prognóstico do desastre:
? Nicou.
? Não Nicou.
? Nicou!
? Não Nicou!
O mediador intervém:
? Senhores, por favor!
? Nicou. Não Nicou. Nicou! Não Nicou!
Rapidamente o mediador solicita um break.
As duas equipes de assessores atônicos, sem saber do que se tratava, procuravam achar uma saída. Pouco tempo.
Voltam para o terceiro bloco, que é aberto pelo mediador anunciando que agora as perguntas seriam diretas entre os candidatos.
? Nicou? Não Nicou? Nicou! Não Nicou!
Instala-se o caos. Entram os assessores. O diretor do programa não sabe o que fazer, olha para o Ibope - é recorde! Lá de cima ele grita: "não coooortaaaaa"
O mediador atende ao pedido do diretor e pergunta:
? Senhores, o que podem estar pensando seus eleitores?
Ao que um grita
? Que se dane o povo, que Nicou, Nicou!
O outro já sendo arrastado para fora revida:
? Não Nicou!
José Milton Castan Jr. é psicanalista e escritor - www.psicastan.com.br