Você Tem Medo Do Quê?
José Milton Castan Jr.
A aeromoça já havia passado solicitando que retornássemos os encostos das poltronas para posição vertical, logo iríamos decolar. Eu voltava de uma palestra que havia proferido em Foz do Iguaçu, estava sentado pouco mais ao fundo do avião folheando uma revista, e nem percebi a entrada de um passageiro retardatário. Como estava ao lado do corredor, apenas com sutil guinada na cabeça para direita, pude ver o leve, porém decidido andar, daquela que de pronto imaginei, poderia me privar do precioso espaço adicional da poltrona vazia, o qual de bom grado, certamente cederia. O corredor se transformara numa passarela, a cada passada eu acompanhava atento, e baixinho dizia: ""ela irá sentar aqui"", ""vai sentar aqui"", até que parou de costas para mim. Temi tê-la perdido para o outro careca ao lado. Mas felicidade pode ter infinitas variações, e uma simples rodada de tronco seguido de ""com licença"", nos leva às alturas.
Nada disto tem a ver com conquistas ou assédios, tudo se passou no meu imaginário, e que a realidade repente pode ser dolorosa: desejei não levantar para lhe abrir passagem, pois percebi seria fulminado quando nossos ombros não se encontrassem. Não havia como. Cerimoniosamente levantei, mas tive o cuidado de afastar meus calcanhares do chão. Sua beleza agora estava completa e o perfume fatalmente desguarneceu minhas últimas resistências:
- Prazer - estendi-lhe minha mão, não sem antes empertigar os ombros.
Realmente não sei se respondeu, pois sua gélida mão decretou um glacial distanciamento. Senti-me um tolo. Quanta besteira. Voltei para minha revista, mas por pouco tempo, vez que pensei: aquela beleza espanhola de cabelos negros e densos, jamais passaria despercebida numa sala de espera de aeroporto. Ela chegou atrasada. Estaria se despedindo longamente de seu amado? Decidi por fim naquele embate. Fechei os olhos, e sempre os mantenho fechados para sentir o friozinho na barriga quando do avião, agora, decolando. Uma leve cutucada no braço me fez abrir os olhos, e percebi que ela tentava se ajeitar na poltrona enquanto o avião ia ganhando velocidade. Seus movimentos não eram coordenados. Num instante tudo fez sentido: o atraso, suas mãos geladas, o distanciamento e seus movimentos ansiosos: Ela tem medo de avião!! Ah, ah! Voltou revigorada a minha destronada autoestima. Agora eu estava no comando. Não me fiz de rogado, quis virar o ombro um pouco mais para o corredor. Seria minha vingança. Mas desisti. Sempre haverá uma chance (me esquecendo das diferenças em nossas alturas)!
Como era noite, não dava para perceber as condições do tempo fora do avião, mas aquele sinal de atar os cintos seguido pela voz do comandante informando que estávamos entrando em área de instabilidade, prenunciava mau tempo. E demorou nadinha, o avião chacoalhava. Enviesei meus olhos sem virar a cabeça, e ela estática. Linda e absolutamente paralisada. Isto logo mudaria, pois um..., dois... e no terceiro mergulho do avião, este sim alarmante, ela instintivamente se agarrou em mim com tanta força, que pude sentir... sei lá!
Ela bem sem jeito desculpa-se com rouca e sexy voz:
- Mil perdões
Ao que eu maliciosamente respondo:
- Que nada! Foi um prazer!
Encabulada me solta. O avião estabiliza e vamos assim até Guarulhos.
Avião em solo, me levanto e abro caminho para ela. Sempre nas pontas dos pés.
Revejo-a uma última vez pelo saguão andando altiva e segura, enquanto penso: todos temos nossos medos pessoais, ao mesmo tempo em que temos o mesmo singular e universal medo: a morte! E que talvez, todos medos não sejam nada mais que a pura tradução do medo da morte, transvestidos em nossos medos pessoais.
Conheci duas mulheres ao mesmo tempo, e aquela que se mostrou real e verdadeira, sinto ainda o cheiro do seu perfume em minha camisa.
E mais um pouco teria que dar conta, lá em casa, daquele perfume. Ai...ai...ai...!!
José Milton Castan Jr. é psicanalista e escritor - www.psicastan.com.br