ARTIGOS

O relógio



José Milton Castan Jr.

Sabia que um dia iria buscá-lo. Passaram-se muitos anos, chegou o dia. Ontem fui pegá-lo, e era a primeira vez que voltava à casa do meu pai, desde então. O relógio de parede estava lá me esperando; mas o pêndulo inerte. Fiquei petrificado quando vi o ponteiro gordinho estacionado pouco além do "nove", e o ponteiro comprido exatamente em cima do "oito". Marcava nove e quarenta. Não poderia ser apenas coincidência. Haveria algum significado.

Para mim aquele relógio sempre existiu. Meus avós paternos moravam num enorme casarão na rua Conde de Sarzedas, e é de lá que me vem a primeira imagem. Uma enorme porta de duas folhas na entrada, e por trás uma longa escadaria de madeira, brilhantemente lustrada que dava numa grande sala, (não sei bem ao certo se tudo era realmente desproporcionalmente grande, ou eu que era muito pequeno). Ao centro da sala uma mesa de oito ou dez lugares, e sobre a cabeceira, onde se sentava meu avô Lito, o relógio de parede marcando o tempo. E ele me seduzia e hipnotizava, não apenas pelo lânguido e "tiquetaqueante" vai e vem do pêndulo dourado, ou do avançar preguiçoso dos ponteiros, mas, pelo som vindo de suas profundezas, que marcava cada meia hora: era lindo, sonoro, grave, profundo e sobretudo melancólico.

Sob sua imponente posição passaram-se, talvez setenta anos. Da casa dos meus avós, para a de uma tia, e de lá, para a casa do meu pai. Não lembro quando me foi prometido, mas um dia ficou decidido que eu seria seu guardião. E agora eu estava de frente a ele. O pêndulo inanimado e os ponteiros presos: nove e quarenta. O relógio não mais marcava as horas dele: meu pai faleceu as nove e quarenta deste sábado último.

Solitariamente sentei no sofá bem em frente ao relógio. Deveria dar corda e fazê-lo voltar a funcionar. Não o fiz. Apenas o olhava. Fui então sendo tomado por uma melancolia, aquela mesma quando escutava seus badalos e meus pensamentos alçaram voo, para o passado:

Minha infância não deve ter sido muito diferente de tantos. Porém, ela foi marcada, melhor dizendo, crivada, sinetada por doloridas passagens, que além de me corroerem anos, continuam sendo os ponteiros tortos de uma bússola que insisto em querer mudar.

Ainda escuto o som oco da cabeça de minha mãe batendo na parede. As brigas de meus pais, por vezes acabavam em agressões físicas. As verbais eram a constante. E eu corria para me esconder atrás do sofá.

Para meu pai, sua obrigação e responsabilidade era manter a casa e nos dar educação, e isto ele fez melhor do que ninguém. Meu reconhecimento e considerações cessam por aqui.

Ele não sabia, porém, era preciso mais, muito mais: era necessário amor!

Não o recrimino, pois antes de réu, possivelmente também foi vítima. Talvez amor para ele fosse sinônimo de rígida educação. Sinto por mim, por meus irmãos e por todas as crianças que foram, estão sendo ou serão apartadas de uma criação afetuosa, regida pela compreensão e diálogo. Agradeço, porém pela rigidez e correição moral.

- Pai: lamento, eu não saberia dizer, te amo. Me desculpe. Mas saiba, por favor, foi exatamente a falta que senti dessa palavra, a ausência de sua mão acarinhando o meu rosto, que me fazem a todo instante dizer o quanto os amo; aos meus filhos. Então meu sofrimento teve valor. E você cumpriu a sua missão. Obrigado!

Chorei apenas na hora do seu sepultamento, era um choro impreciso. Minhas lágrimas de agora são precisas e preciosas.

Ainda sentado no sofá, fui aos poucos voltando para a realidade, uma nova realidade. Olhei o relógio na parede, e mesmo parado pude escutar suas badaladas. Era hora de seguir em frente! Delicadamente retirei o relógio da parede, calcei o pêndulo e embrulhei com muito carinho. Já em minha casa tratei de colocá-lo em destaque na sala, dei corda e pela primeira vez impulsionei o pêndulo.

Serei seu guardião. E ele marcará o meu tempo.

E acabo de escutar suas badaladas me relembrando: amor é o suficiente. O resto é ilusão.

José Milton Castan Jr. é psicanalista e escritor - www.psicastan.com.br