Inspiração
José Milton Castan Jr.
-- Inspira... Expira... Muito bem Seu Malaquias! - e eu escutava, um tanto desatento, as orientações do médico que examinava meu amigo.
-- Mais uma vez: Inspira... Solta o ar...
Sentado em uma cadeira em frente à mesa do médico, com o tronco meio virado, olhava para Seu Malaquias deitado em uma maca. Mas sinceramente, amigo leitor, naquele momento me arrependia por inteiro ter aceitado o pedido de Seu Malaquias, para que o acompanhasse naquela consulta de rotina. E pensar que há menos de uma hora eu estava exultando com o mesmo pedido.
Explico:
Seu Malaquias havia ligado perguntando se eu teria algum compromisso para esta última terça-feira de manhã. Com minha agenda livre, lhe perguntei o que precisava, e ele me solicitou que o acompanhasse numa consulta médica. Em princípio fiquei preocupado achando que fosse algum assunto mais urgente, mas Seu Malaquias me garantiu que era uma consulta rotineira. Convite aceito.
No horário marcado, Seu Malaquias que havia feito questão de me pegar com seu carro, deu duas buzinadas em frente de casa. Sai todo prosa, Seu Malaquias é um amigo querido, adoro conversar e estar com ele, mesmo que isto corresponda a um perigo, um delicioso perigo, pois não deixa passar uma ocasião para mostrar sua sagacidade e argúcia com tiradas geniais, e muitas vezes a ""vítima"" sou eu mesmo. Foi o que aconteceu.
Ao entrar no carro de seu Malaquias não pude deixar de notar que ele usava um par de luvas daquelas que os pilotos de corrida usam, e num instante eu já havia falado:
-- Que chique essas luvas, Seu Malaquias.
E ele com aquele famoso olhar que nada diz e tudo fala. Lamentavelmente, só eu não entendi. Dois ou três segundos emendei, e novamente sem pensar:
-- E esses óculos, chiquérrimo!
Não sabia, mas havia me colocado à beira do abismo e Seu Malaquias estava prestes a me dar um empurrão, para eu seguir irremediavelmente para minhas néscias profundezas:
-- Sabe Castan - iniciou Seu Malaquias - eu adoro a companhia do sol, muitas vezes ele me aquecesse e ilumina. Mas tem uma partezinha perniciosa dele.
E eu escutando atento e um pouco tenso, mas nada falei.
Seu Malaquias continuou, enquanto dirigia:
-- Uso essas luvas para me proteger, e esse óculos para filtrar a parte perversa do sol. Tenho câncer de pele!
E lá fui eu... ""pro fundo""! Notei que o painel do carro à minha frente foi crescendo, crescendo. Comecei a sentir um calor e tentei alcançar o botão do vidro elétrico, mas não pude. Eu havia encolhido tanto, mas tanto mesmo no banco do passageiro, que tenho certeza, se alguém do lado de fora olhasse o carro, não veria ninguém além do motorista. Eu havia me resumido à minha insignificância.
Não me pergunte amigo leitor, das minhas reações. Não sei o que fiz ou falei, apenas estava tremendamente envergonhado por ter feito mau juízo. Sequer me lembro do Seu Malaquias estacionando o carro, ou mesmo aguardando na recepção. Apenas zunia dentro de minha cabeça:
""partezinha perniciosa"" e ""tenho câncer de pele"".
-- Última vez Seu Malaquias: Inspira... - e quando escutei o médico falar ""inspira"", imediatamente associei com ""inspiração"" e consegui voltar ao mundo.
A ""partezinha perniciosa"": esse nosso ímpeto incontrolável de julgar os outros. E como julgamos e erramos. E como nos expomos.
Agora atento, escutava o médico:
-- Saúde de um menino, Seu Malaquias. Passar bem!
Despedimos-nos e saímos do consultório.
Já no carro, precisava me desculpar da indelicadeza em mal julgá-lo com ""minha partezinha perniciosa"", mas foi aí que me dei conta que o médico nada havia falado sobre o câncer de pele. E quando vi, já estávamos estacionados em minha casa. Ia falar, mas não tive tempo, Seu Malaquias novamente na frente:
-- Obrigado pela companhia! - e estampou um sorriso revelador. E eu entendi.
Seu Malaquias é mesmo uma inspiração!
José Milton Castan Jr. é psicanalista e escritor - www.psicastan.com.br