ARTIGOS

Bem-te-vi



José Milton Castan Jr.


-- Bem-te-vi é uma espécie em extinção! me falou Seu Malaquias.
-- Errado, Seu Malaquias! falei convicto.
Seu Malaquias, com longa jornada já cumprida, possui uma forma peculiar de expressar sua visão de vida. Enxerga e interpreta o mundo com sensibilidade e clareza. E nossas conversas sempre me produzem desarranjos de toda ordem. Mas daí a ele afirmar que bem-te-vi é um pássaro em extinção, acho que era chegada a minha vez...
-- Temos bem-te-vis por toda parte, meu caro amigo, e eu falava sem preocupações em receber uma das suas famosas lambadas.
E continuava triunfante:
-- Encontram-se bem-te-vis por toda a América Latina, pela América Central e até nos EUA.
Seu Malaquias franziu a testa, até me pareceu fechar um pouco os olhos, mas hoje eu estava decidido, e continuei:
-- E, claro, o nome bem-te-vi é uma onomatopeia (e aqui eu já estava deslizando fácil, mostrando ao meu amigo que sabia ser onomatopeia a palavra cuja pronuncia imita o próprio som do seu canto).
Seu Malaquias inabalável com tudo que eu falava. Aquilo inicialmente foi me irritando, e logo se acabaram meus conhecimentos sobre bem-te-vis. E então: aquele silêncio pavoroso. Nunca gosto disto.
Seu Malaquias toma as rédeas para si, assim tão simples, sem meias voltas e sem esforço:
-- Meu caro Castan, veja como bem-te-vi é uma espécie em extinção...
E lá estava eu atento e totalmente dominado:
-- Ali perto do Conjunto Hospitalar de Sorocaba há um banco e eu precisava fazer depósito, e, como você sabe, estacionar por ali é sempre um desafio. Esperava encontrar no estacionamento do banco a vaga de idoso livre, mas assim que ia chegando, um carro à minha frente estacionou na vaga. Não me aborreci, melhor sorte do velhinho que primeiro chegou. Engatei primeira, ia dar mais uma volta, mas para minha surpresa vi descer do carro não um senhor de cabelos brancos e com andar dificultoso, mas um belo rapaz cheio de vitalidade.
Seu Malaquias continuava a falar, e eu atento:
-- Pensei que dentro do carro havia ficado talvez um senhor ou uma senhora, que, de tão senil, sequer poderia descer, e seu neto fazia a benemerência de levá-lo ao banco. Qual o quê! O rapaz acionou o alarme e não havia ninguém dentro do carro.
Seu Malaquias parou um pouco, acho que refletia, mas continuou:
-- Resolvi estacionar bem atrás do carro do rapaz e aguardar. E não demorou muito ele apareceu e me olhou com cara de pouca conversa. Entrou no carro, acionou o motor, e em seguida uma luz branca indicando que ele iria dar ré. Não deu. Para seu azar, ele somente conseguiria sair se eu adiantasse um tanto o meu carro. Não adiantei. Aliás, como disse, tinha que ir ao banco. E fui. O rapaz me chamou, acho que ouvi algo como "ô vô!", e fiz que não fosse comigo.
Então perguntei ao Seu Malaquias:
-- E o que aconteceu?
-- Bem, quando voltei do banco o rapaz estava sentado com a porta do carro dele aberta, aguardando, bem aborrecido pelo que pude apurar. Quando me viu, meio resignado, bateu a porta. Da minha parte, liguei o meu carro e fui embora.
Foi aí que eu perguntei já um tanto ressabiado:
-- Mas Seu Malaquias, cadê o bem-te-vi da história?
-- Não te disse, em extinção!
E eu não estava entendendo mais nada:
-- O quê? Do que o senhor está falando?
-- Simples (acho que neste ponto Seu Malaquias quase me chamou de filhote de urubu), meu caro: se o bem-te-vi do rapaz não fosse extinto, no instante que estacionou na vaga dos idosos ele teria escutado um sonoro "bem-te-vi", ou seja, sua consciência lhe dizendo: estou "bem-te-vendo", sua insensatez e falta de respeito; não faça isso rapaz, é errado!
Assim, dei boas risadas com a história do meu amigo. Logo me despedi e fui para o consultório trabalhar. Ia pelo caminho pensando: esse Seu Malaquias tem cada uma.
Mas... Agora e a todo instante, basta eu pensar em fazer algo, digamos assim, meio furtivo, e escuto um danado de um bem-te-vi piando alto na minha cabeça:
-- Bem-te-vi! Estou bem-te-vendo! Bem-te-verei se fizer isso...


José Milton Castan Jr. é psicanalista e escritor - www.psicastan.com.br