ARTIGOS

Almoçando com Seu Malaquias


Fazia duas semanas que não encontrava com meu querido amigo Seu Malaquias, tempo suficiente para um convite. Fomos almoçar.

Podendo acontecer que algum dos meus leitores ainda não conheça Seu Malaquias e seus famosos piparotes, o qual invariavelmente sou eu o piparoteado, observo que é preciso resgatar as crônicas "malaquianas" em edições anteriores do nosso centenário periódico, ou dar uma acessada na moderna edição digital (http://www.jornalcruzeiro.com.br/), recém-repaginada, que ficou um bocado bonita e recheada de novidades.

Seu Malaquias apesar da idade anda ligeiro, como que se seus passos desejassem acompanhar seus pensamentos. E estávamos caminhando pelos corredores do shopping procurando um restaurante, quando parei e pela vitrine encontrei uma reluzente raquete de tênis, meu esporte de quarenta anos. Quando dei conta, olhei para o lado e vi a carequinha do Seu Malaquias bem lá à frente no corredor, saí correndo para não perdê-lo. Não sei se ele fez com intenção, mas enquanto corria, um fugaz pensamento também percorreu minha mente: "perdas impressionam mais do que ganhos".

- Puxa Seu Malaquias, nem para me esperar! - protestei indignado, mas ele pareceu não escutar.

Já sentados, Seu Malaquias tinha à sua frente um prato de arroz, feijão, bife à milanesa e algumas folhas de verduras, e eu havia pesado - sim "comida por kilo" - uma suculenta mistureba de rabada, pastelzinho de queijo, arroz integral e três sushis de salmão. Bem..., acho que não queria falar isso, mas estaria faltando com a verdade ao amigo leitor, pois acompanhavam também umas cinco tirinhas de dobradinha, e... dois cubinhos de provolone, mas estes eram defumados, ora! Pronto, falei... ai, ai, ai... mas... faltou algo: tenho também a estranha mania de misturar tudo no prato, misturar, remexer, fazer uma paparoca, menos o pastelzinho que já havia devorado. Ufa, ser sincero às vezes dói!

Estávamos ali almoçando e eu querendo entrar num assunto, e este talvez fosse o motivo do convite, ficava bordeando, bordeando até que:

- Sabe Seu Malaquias, tem uma pessoa... - Seu Malaquias parou de comer, levantou os olhos, e eu continuei firme - um camarada que toda vez que nos encontramos, ou preciso lhe falar, sinto primeiro um desconforto e depois uma vontade de lhe dizer umas poucas e boas.

Seu Malaquias voltou a comer. E segui:

- O sujeito tem o dom de me irritar e de aporrinhar.

- Almoço comezinho esse. - falou-me Seu Malaquias olhando fixo para seu prato.

- O quê? - falei sem entender, e continuei: - comezinho de vulgar?

- Comezinho de simples, fácil de comer ou fácil de entender, meu caro.

Olhei meio sem jeito para meu prato, que por sorte, os desaparecidos sushis e o pastelzinho me aliviavam a contenda, e continuei a conversa:

- Mas eu falava daquele sujeito irritante e aporrinhador. - e Seu Malaquias candidamente:

- Então, fácil de entender.

- Se é fácil de entender, me explique o porquê que ele me irrita tanto?

Seu Malaquias não se intimida - e eu emendo:

- E por qual motivo... - porém não pude terminar a frase, fui interrompido! Não uma interrupção qualquer, dessas que alguém passa atropelando nossas palavras e desanda a falar, mas ser interrompido por Seu Malaquias corresponde primeiro ele não mover a cabeça, senão seus olhos, que então, foram vagarosamente se erguendo em minha direção como desejando encontrar o alvo, e em seguida sua cabeça acompanhando seus olhos como apurando a mira, e no momento que ambos estancaram, anunciaram o tiro certeiro que entortaria minha rígida soberba:

- Se alguém te irrita primeiro agradeça a ele, e em seguida procure em você, eu disse em você e não nele, encontre em você os porquês e os motivos.

E Seu Malaquias voltou a comer.

Quanto a mim perdi o apetite. Às vezes a verdade dói.

José Milton Castan Jr. é psicanalista e escritor - www.psicastan.com.br