Do homem que chora*
José Milton Castan Jr.
Nasceu Bia!
Há menos de duas horas estava quietinha dentro da barriga de sua mamãe, e agora chora, ou melhor, esperneia no berçário.
À alegria dum parto sem problemas e uma criança sadia contrapõe-se ao ar de cansado de seu pai. Os últimos dois meses da gestação foram bem mobilizadores, havia sério risco de parto prematuro.
Olhávamos por entre a vidraça do berçário aquela que nos trazia felicidade: Beatriz "aquela que traz felicidade". Debutei nova era: de vovô. E meu filho de papai.
E Bia deitada só de fraldas num bercinho aquecido, busca com a língua incessantemente o seio de sua mãe, seio que ainda não conhece. E, imaginei, por não encontrá-lo chora.
Mas do que um dia virá chorar Bia? Nem me arrisco imaginar como será o mundo em que viverá. Fiquei aflito pelas infinitas possibilidades que poderão fazê-la chorar no futuro.
Ali em frente ao berçário divaguei e me passaram duas possibilidades.
A primeira possibilidade -- "Uma trama e um trauma":
Bia tinha agora seis para sete anos. Menininha esperta, não tinha muita parada. Gostava de brincar, pular e correr. Sua energia parecia não ter fim. A casa apenas ganhava tranquilidade quando Bia dormia.
Certo dia a moreninha de cabelos cacheados passou correndo pela mãe e falou:
-- Mamãe vou brincar lá na rua! -- e nem teve tempo de escutar o que sua mãe falou.
Então menos de cinco minutos e ela retorna para casa chorando com seu joelhinho ralado e ensanguentado:
-- Mamãe, mamãe! Ai... ai... ai... tá doendo muito!
A mãe ríspida e sem paciência com tanta coisa a fazer:
-- Sua menina sem parada. Quantas vezes já te falei! Você não cria juízo mesmo. Engole esse choro e vai ao banheiro lavar isso aí. E depois se aquieta num canto!
Bia encolhida, chorando e triste vive um misto de dor, medo e culpa. Não era a primeira vez.
Continuo meu devaneio. Segunda possibilidade -- "Mesma trama e uma ventura":
Então menos de cinco minutos e Bia retorna para casa chorando com o joelhinho ralado e ensanguentado:
-- Mamãe, mamãe! Ai... ai... ai...tá doendo muito!
A mãe pacienciosa e acolhedora:
-- Calma meu amor! Vai passar já... já. Calma! Vou cuidar de você... fica tranquila! Senta aqui no meu colo.
E mais um pouco a mãe fala:
-- Pronto! Passou? Agora se quiser voltar a brincar pode ir, mas por favor, cuidado para não se machucar de novo.
E Bia sai feliz pela porta da rua.
Meu devaneio foi interrompido. Encerrava-se o horário de visitas.
De madrugada voltei a encontrar Bia, agora com 26 anos. Minhas preocupações concretizavam-se num sonho turbulento, pois minha neta passava por fase tremendamente difícil. Problemas com o emprego, com o marido, um vaso que quebrara, a pulseirinha de ouro que havia sumido... e eu estava preso num cubo de gelo e nada podia fazer.
Então vi a Bia do trauma, agora uma mulher, absolutamente incapaz de enfrentar e superar essas dificuldades e problemas. Encolhida num canto chorava sentindo-se só, com medo e culpada. E sem motivos olhava para uma antiga cicatriz no joelho.
Acordei suando e engasgado!
Foi um alívio acordar e perceber o pesadelo. Como logo em seguida foi também tranquilizador pensar na outra possibilidade, a Bia da ventura: uma mulher que encarava os mesmos problemas e dificuldades com segurança e esperança que tudo "já... já vai passar".
Insone pus-me a pensar: que de fato eu poderia fazer para que o inevitável futuro e sua faceta perversa não fizesse minha garotinha sofrer? Lembrei-me que dias atrás meu filho, de uma forma ou de outra, me perguntou a mesma coisa.
Eis a resposta: Que a mãe (e, óbvio, não apenas a mãe, mas o pai, avós, cuidadores etc.) seja "suficientemente boa" ("suficientemente bons") para seu filho (neto, enteado etc.), ou seja, o manejo cuidadoso, carinhoso, atencioso, paciencioso e fundamentalmente acolhedor, amparador e na medida certa (nem mais nem menos), para uma criança ainda indefesa frente às suas dificuldades e desafios, que muitas vezes serão um joelho ralado ou uma pueril intercorrência qualquer.
Vida longa e feliz para Beatriz!
*Título parafraseado e tema estendido da coluna do último dia 6 de agosto do Dr. Edgard Steffen neste mesmo espaço: "Da criança que chora".
José Milton Castan Jr. é psicanalista e escritor - www.psicastan.com.br