Visita de Tia Carminda
José Milton Castan Jr.
-- "Ô manhêê", Tia Carminda ainda não chegou?
-- Não amor! Mas venha, vamos cantar parabéns.
Era o aniversário de 6 anos de Péricles. Tia Carminda havia prometido um velocípede de presente. A festa de aniversário correndo solta, mas o pequeno Péricles chorando muito, pois nada de Tia Carminda e nem velocípede.
O tempo foi passando, Péricles cresceu e descobriu que Tia Carminda tinha um defeito: era mentirosa. Não daquelas mentiras que por vezes nem damos conta e aplainam nossos tortuosos e imperfeitos egos, mas uma maníaca mentirosa. Uma mitômana. Ela dizia que era diretora da escola, e na verdade era escriturária. Falava que não se casou, pois seu rico noivo falecera poucos dias antes do casório. Ninguém havia conhecido o tal noivo rico.
O caso do velocípede e descoberta das mentiras ficaram marcados a tal ponto que Péricles desenvolveu certa obsessão e compulsão à verdade.
O tempo passou, Péricles casou e teve uma filha. Fazia anos que não sabia de Tia Carminda, a não ser que estivera muito doente com problemas no coração e à beira de morrer. Até que toca o telefone. A filha de Péricles atende: era Tia Carminda anunciando que desejava visitá-los na próxima semana. Péricles pensou rápido e cochichou: "fala que estou em viagem e só volto daqui dois meses". Não era de mentir, mas havia ali uma certa desforra por conta do velocípede.
Passam-se exatos dois meses. Tia Carminda de novo por telefone avisando que acabara de chegar pedindo que fossem buscá-la na rodoviária. Agora a filha que cochicha:
-- O que eu falo pai? - Péricles pensou rápido e disparou:
-- Diga que sua mãe vai buscá-la -- e uma vassourada atinge seu traseiro com o seguinte recado:
-- Tô fora Péricles, a tia é sua. Se vira! -- rangeu a esposa varrendo a casa.
-- Lucinha meu amor pensa bem, Tia Carminda não vai dar sossego. Tenho um plano: Você vai até a rodoviária, a traz aqui para casa, ela dorme apenas esta noite e arranjamos um jeito de despachá-la.
-- E o que você vai fazer?
Péricles não muito certo da reação da esposa fala com cuidado:
-- Se falarmos que estou viajando ela vai querer ficar e esperar que eu volte.
-- E o que você vai falar? -- pergunta a esposa já sem nenhuma paciência.
-- Tive uma ideia! Vou ficar escondido e... -- Péricles às duríssimas penas convence Lucinha de seu plano, e claro, aqui também havia uma vingançazinha.
No carro voltando da rodoviária Lucinha aos prantos fala para Tia Carminda:
-- Pois é Tia Carminda a senhora estava tão doente que preferi não lhe contar, mas o Péricles faleceu há dois anos. Não queríamos perturbá-la -- o seu coração sabe...
Já no outro dia de manhã, no café na cozinha, Tia Carminda toda borocoxô:
-- Olha Lucinha, nem dormi direito. Fiquei muito abalada. O Péricles era meu sobrinho predileto.
Quero fazer uma última homenagem. Me leva no cemitério?
-- NÃO!!!, ou melhor, não... é possível o Péricles foi...foi... cremado! -- tenta contornar Lucinha.
-- Mas eu tenho um presente guardado há anos e que iria dar hoje para ele!
Péricles, até então escondido, num impulso aparece na cozinha. Tia Carminda leva enorme susto e cai no chão! Ambulância... hospital... coração! Tia Carminda é operada.
O médico que operou Tia Carminda chama Péricles e Lucinha e informa:
-- Foi um infarto. Ela vai se recuperar, mas repouso absoluto e não poderá viajar pelos próximos três ou quatro meses!
-- Mentiras! Ora mentiras! Viu no que deu? -- resmunga Lucinha.
José Milton Castan Jr. é psicanalista e escritor - www.psicastan.com.br