OUTRO OLHAR

A janela e a feiura da paisagem


A exposição Queermuseu -- Cartografias da diferença na arte brasileira foi cancelada neste mês em Porto Alegre por pressão dos protestos de quem viu algumas das obras como símbolos de blasfêmia religiosa e apologia à zoofilia e à pedofilia. Triste história de censura num país que tem a liberdade de expressão garantida por dispositivo constitucional. Triste notícia num país notável pela contradição de silenciar diante dos novos escândalos de corrupção, enquanto, por motivos estranhos, levanta o ruído da intolerância contra a beleza das obras de arte.
 
A mostra reunia obras de artistas consagrados como Adriana Varejão, Cândido Portinari, Fernando Baril, Hudinilson Jr., Lygia Clark, Leonilson, Volpi, Yuri Firmesa. Nem mesmo a importância inegável dessa galeria de nomes foi suficiente para garantir a continuidade do evento. As obras foram expostas por quase um mês e a visitação continuaria até o início de outubro.
 
Tragicamente, o Brasil tem tradição em censura de obras de arte. O fenômeno não é exclusivo de um só país: repete-se em outros lugares do mundo, especialmente como reflexos de governos autoritários. Do nazismo ao stalinismo, é imensa a relação de obras e autores que sofreram os rigores da censura. Muitos foram os casos extremos em que os autores perderam a vida e as obras foram queimadas em praça pública.
 
Para citar três exemplos célebres (entre milhares), a ditadura stalinista assassinou o poeta Ossip Mandelstam, o contista Isaac Babel e o romancista e dramaturgo Máximo Gorki. Eles eram livres pensadores, críticos mordazes dos crimes da ditadura comandada por Josef Stálin, e pagaram com a vida suas atitudes de coragem.
 
Para quem achar exagerada a comparação dos acontecimentos de Porto Alegre com um dos períodos mais terríveis da história humana (a catástrofe do stalinismo), basta dizer que no campo de batalha da obra de arte não existe censura leve, média ou pesada. Toda censura é trágica por natureza, seja qual for o tamanho.
 
A medida do censor é a intolerância latente na sociedade. O censor é o instrumento da presunção do indivíduo em achar que pode ditar limites para a criação artística. E ele ignora que o poder de censurar é contraditório por definição e origem, porque o objetivo a que se presta é calcado nos seus próprios fantasmas. De resto, movidos pela ilusão de poder, nenhuma proibição é capaz de constrangê-los.
 
Os grupos que protestaram contra a exposição em Porto Alegre viram em algumas obras de arte o reflexo de comportamentos existentes na sociedade e eles não aceitaram essa forma de expressão. Se os seus motivos tivessem razão de ser, eles inviabilizariam obras dos gênios Pablo Picasso, Salvador Dalí, Henri Matisse, artistas craques em provocações estéticas. Neste ano, até mesmo em Sorocaba uma obra da exposição Trienal de Artes Frestas foi alvo de polêmica.
 
As obras de arte proibidas em Porto Alegre cumpriram o papel de traduzir diversidades. Em contrapartida, os intolerantes, incapazes de digerirem seus dogmas e exorcizarem seus fantasmas, acharam por bem atacar a exposição como na clássica atitude de quem culpa a janela pela feiura da paisagem.
 
Os grupos que, por pressão nas redes sociais, interromperam a exposição de obras de arte de Porto Alegre foram os mesmos que se calaram diante da exibição de malas de dinheiro da corrupção. Deveriam explicar porque têm força para lutar contra obras de arte e porque são indiferentes às afrontas contidas nas imagens que mostram o dinheiro de propinas vinculado a personagens da política nacional.
 
O mais difícil é acreditar que um ataque desse porte à arte seja fruto de uma época de período democrático no Brasil. O AI-5, que vigorou entre 1968 e 1978, censurou centenas de obras entre músicas, filmes, livros, peças de teatro. Entre várias justificativas, algumas bizarras, os censores evocavam a defesa da moral e dos bons costumes. Na cruzada de moralidade daquela época, ignoravam as denúncias de torturas e mortes patrocinadas pelo governo, outra contradição típica da intolerância.
 
Agora, em tempos de governos democráticos, atitudes autoritárias são tomadas por grupos da população como em Porto Alegre. E isso é um desastre. Embora pareçam minorias, esses grupos fazem ruídos, crescem e ganham forças capazes de mudar a história. Aproveitam os vazios existentes e usam os discursos mais extremados para buscar adesão para a sua cartilha de delírios. Fazem valer o discurso do sangue nos olhos, do ódio ao diferente, do fim da liberdade. E pintam uma paisagem impossível de ser admirada.