#fridasofia e o avião pagador
Histórias não surgem do nada: alguém contou um ponto, outro acrescentou dois pontos, um terceiro adicionou uma distorção e outro receptor entendeu tudo errado
Na semana passada, no México, a tentativa de resgate de uma menina de 12 anos dos escombros de uma escola comoveu multidões. Era o dia seguinte ao terremoto na Cidade do México. Um militar e uma rede de TV divulgaram detalhes de comunicação dos socorristas com a menina Frida Sofía (esse era o nome da garotinha), o que aumentou a aflição em meio a tamanha carga dramática. Mas a farsa durou 24 horas: a menina não existia. E o que foi tratado como fato jornalístico não passava de ficção.
Esse fenômeno, rotulado como fake news, tem outros exemplos na imprensa mundial. E no cinema. E no Brasil e em Sorocaba. Casos como esses colocam em xeque a precisão da atividade jornalística. Mas também são eloquentes no sentido de prestigiar as reportagens bem apuradas. Valorizam as histórias bem contadas e consistentes. Exaltam o compromisso com a checagem de informações, mesmo que esse rigor comprometa prazos.
Histórias não surgem do nada: alguém contou um ponto, outro acrescentou dois pontos, um terceiro adicionou uma distorção e outro receptor entendeu tudo errado. Bastam esses ingredientes para formar uma rede de comunicação difícil de ser contestada e esclarecida. Se o conteúdo for respaldado por autoridades ávidas por holofotes, que falam para repórteres burocráticos, o potencial de causar danos é equivalente ao poder de uma bomba.
Há 14 anos, o mundo se assustou com a notícia de que o prestigioso jornal The New York Times demitiu o repórter Jayson Blair por terem sido descobertas informações falsas em suas reportagens. O jornal denunciou o que classificou como invenções e erros intencionais do repórter em seus textos. Em suas reportagens, Blair fabricou declarações, elaborou cenas, abusou do Ctrl+C Ctrl+V, escreveu reportagens que davam a entender que estava em um local quando não havia saído de Nova York.
Na época, a história foi um escândalo. Após demitir o repórter, o jornal criou um e-mail específico para receber reclamações de pessoas prejudicadas por textos do ex-funcionário. O problema é que prejuízos causados por invenções que substituem reportagens podem levar a transformações indevidas e irrecuperáveis.
O tema faz recordar, no cinema, A montanha dos sete abutres. O filme conta a história do repórter Charles Tatum (Kirk Douglas), às voltas com o resgate de um homem preso em uma mina. Com o objetivo de se dar bem, o repórter manipula os acontecimentos de acordo com os seus interesses, faz do resgate um espetáculo sensacionalista e consegue enganar todo mundo.
Há 15 anos, em Sorocaba, um confronto entre polícia e bandidos no pedágio da Castelinho (rodovia Senador José Ermírio de Moraes) resultou na morte de 12 criminosos. O fato teve repercussão nacional. As versões davam conta de que o bando teria vindo à cidade com planos de assaltar um avião pagador no aeroporto. Todas as análises oficiais levavam em conta que a interceptação da quadrilha teria evitado um grande assalto.
Nessa época, eu trabalhava em São Paulo e fui enviado a Sorocaba com a tarefa de descobrir detalhes sobre o avião pagador. Era preciso saber qual a quantia de dinheiro transportada pela aeronave e que, pelos indícios, seria destinada ao abastecimento de bancos regionais, e qual seria o horário programado para o pouso. No retorno ao jornal, a chefe de reportagem ficou decepcionada quando informei que a história do avião pagador era falsa. Até então, completavam-se dois anos que o aeroporto não recebia aeronaves com esse perfil. Essa contradição desmontava a versão oficial apresentada como justificativa para a operação no pedágio.
Também não voltei para a redação de mãos vazias. Contei a história de uma família que teve a casa atingida por tiros na hora do confronto, por volta das 7h30. A casa ficava em um condomínio na linha de tiro a partir do pedágio. Uma bala ricocheteou em vários pontos no interior da residência. Naquela hora, um casal se preparava para iniciar as atividades do cotidiano. Um filho tinha saído minutos antes para a escola. A exposição ao risco de uma tragédia aterrorizou a família.
De resto, casos como esses são lições de reportagem no México, em Sorocaba e em qualquer lugar do mundo. Mostram como a desconfiança constante é uma ferramenta de segurança do repórter, operário da palavra que se equilibra todos os dias em campo minado de interesses por todos os lados. As Fridas Sofías e os aviões pagadores não são casos raros nesse universo. A saída é desconfiar sempre, mesmo quando (e principalmente) as informações partem de fontes oficiais.