LETRA VIVA

Festa junina em janeiro


Nelson Fonseca Neto
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Dizem que sou bonachão. Acho que é verdade. Poucas coisas me irritam, e uma delas é o calor. Fico triste quando acordo e vejo o céu escandalosamente azul. Vou trabalhar empolgado quando percebo que a chuvinha vai persistir o dia inteiro.

Demorei um bom tempo para encontrar uma tática que me ajudasse a suportar o calorão de janeiro. Importante dizer que a minha tática revela evolução espiritual. Aprendi a suportar o calor lendo textos que mostram os detalhes da Sibéria. Também pode ser uma viagem mental a épocas de glorioso frio. É o que estou fazendo neste momento. Meu cérebro está dominado por músicas, cheiros e imagens de festas juninas. Não estou pensando nas festas juninas da escola. Sim, elas eram maravilhosas, mas não é nelas que eu estou pensando. Eu estou, isso sim, de volta às festas juninas do CIC. Sei que vai parecer que eu tenho algum problema mental ao pensar em festa junina em janeiro, mas não tem problema. Ao longo destes anos, vocês já conhecem as minhas entranhas.

Sempre que eu passo em frente ao estádio na Santa Rosália e vejo aquela praça desolada, lembro que em junho e julho, lá pelos anos 80 e 90, a vida ficava mais colorida. Era um ritual familiar ir algumas noites bater perna naquele caos junino. Claro que a memória é traiçoeira e megalomaníaca, mas tenho certeza de que a cidade inteira cabia naquele terreno de terra batida.

Hoje, aos 40 anos, sou um sujeito mais precavido. Nem chego perto da maionese que repousa matreira na mesa do churrasco. Esse é um exemplo. Eu poderia dar outros, mas não quero embaralhar este texto. Sou um sujeito mais precavido, mais prudente, e olho um pouco horrorizado para as festas que aconteciam no CIC. Não estou falando da alimentação. Sempre me pareceu que as barraquinhas eram confiáveis. O que me espanta hoje era a imprudência no quesito brinquedos.

Eu era criança naquela época, mas já tinha capacidade para perceber a precariedade daquelas coisas. Quando ventava um pouco mais forte, a estrutura da montanha-russa dava umas balançadas esquisitas. Tinha um brinquedo em forma de prato, chamado Samba ou La Bamba, que arrebentava a espinha dos incautos. Juro que já vi gente sair de lá mancando feio ou com a boca sangrando. O espaço do carrinho de bate-bate era um terror. A gente levava uns trancos pesados na cervical. Como nunca tive índole agressiva, eu era o alvo preferencial dos frequentadores mais sádicos.

Entrava ano, saía ano, eu tinha que fazer meditação transcendental para enfrentar o trem-fantasma. Claro que eu sabia que aquilo era tosco, de mentira, ridiculamente de mentira. Mas vá fazer um ansioso nato encarar as coisas com a frieza necessária. Os minutos que antecediam a ida ao trem-fantasma eram testes para a bexiga e para o intestino. Depois, quando não tinha mais jeito, quando eu estava no carrinho, as coisas ficavam mais amenas. O trajeto durava, quando muito, uns dois minutos. Tinha o boneco de vampiro que levantava do caixão, tinha a moça toda ensanguentada, tinha uma caveira infame que esguichava água. O som lá dentro era repleto de gritos e de risadas tenebrosas. Eu saía de lá me sentindo a pessoa mais destemida do mundo. Essa empáfia durava até o meio do ano seguinte. Nunca mais fui a um trem-fantasma, estou bem mais velho, mas não consigo afirmar que iria sem medo novamente a um deles. Eu quero acreditar que iria sem medo. Como é bom ser otimista!

Eu lembro dos brinquedos, dos barulhos, da música, da comida. Eu lembro de tudo. E o mais importante: eu lembro do vento gelado. Eu lembro de ir à festa do CIC todo encapotado. E todo mundo estava encapotado. O frio de antigamente era mais encorpado. Será que estou ficando maluco? Não, não estou. O frio de antigamente era mais encorpado mesmo. Não aceito réplica. Eu preciso me nutrir de algumas poucas certezas.

Faz muito tempo que não tem mais festa junina no CIC. Sou um homem de fidelidades, e me recuso a ir aos lugares que o poder público escolheu nos últimos anos. Minha cabeça guarda as melhores festas juninas, com as comidas gordurosas, com os brinquedos perigosos, com o frio de cortar o rosto. E o frio de cortar o rosto daqueles junhos antigos me ajuda a encarar os janeiros infernais.