LETRA VIVA

A vida contemporânea explicada por um velho


(primeira parte)
Nelson Fonseca Neto 
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Eu já escrevi aqui em outras ocasiões: sou um velho. Tenho 40 anos, e quando digo que sou velho muita gente acha que estou fazendo graça. Não é o caso. É o momento de explicar a minha velhice. Que fique claro logo de saída: a minha velhice é espiritual. Quanto aos aspectos físicos, eu engano bem. As pessoas acham que eu tenho trinta e poucos. Só uns fiozinhos brancos despontaram por enquanto. Não consigo detectar rugas profundas. Uma vez ou outra, o joelho operado dá sinal de vida. Mas não quero falar de corpo. Hoje eu estou transcendente. O assunto é a alma, o espírito.

Constato que a minha alma é de velho, e não vejo isso como um problema. Também não acho a coisa mais espetacular deste mundo. As coisas são como são. Não adianta chorar ou ficar eufórico. O negócio é tocar o barco com os equipamentos que a vida nos oferece.

São vários os exemplos que comprovam a velhice da minha alma. Não sou frenético. Não berro. Não gosto muito de sair de casa. Gosto de ler livros do século 19. Dirijo com muito cuidado. Mexo mal e porcamente no computador. Não faço transações financeiras pelo celular. Acho que o Atari é o videogame definitivo. Na fala, procuro usar corretamente as regências. Por exemplo, quando uso a palavra CERTEZA, recorro ao DE. Certeza de alguma coisa. Não consigo mais acordar muito tarde. Umas seis horas de sono já bastam. Essas coisas.

Pensando bem, não sou um velho tão puro assim. Tenho uma tatuagem. Às vezes, solto uns palavrões. Sou bem entrosado com os alunos adolescentes. Tenho conta no Facebook. Tenho um smartphone. Acompanho séries da HBO. Faço vídeos com palhaçadas. É uma velhice meio moleca, digamos assim.

Mas por que estou escrevendo essas coisas? Meditações profundas a respeito da alma? Bem que eu queria que fosse isso. Mas não é. O que vocês leram até aqui é um preâmbulo para o assunto principal. É que eu queria falar a respeito de youtubers que dão dicas de livros. Para os que também têm a alma idosa, um esclarecimento. Na internet, tem um negócio chamado YouTube. Já faz tempo que o YouTube virou febre. Lá vocês encontram vídeos de tudo quanto é tipo: filmes novos e antigos de longa duração, programas de televisão, comerciais antigos e vídeos feitos por gente do mundo inteiro (nenezinhos fofos, gatinhos e cachorrinhos aprontando, gente tropeçando na calçada, acidentes; enfim, coisas filmadas e protagonizadas por gente como a gente). De uns anos pra cá, pessoas descobriram que dá para ganhar uma boa grana com esses vídeos feitos por gente como a gente. São os famosos youtubers. E tem youtuber de tudo quanto é jeito. Tem o youtuber que dá dica de maquiagem, o youtuber especializado em videogame, o youtuber professor, o youtuber consultor de moda, o youtuber humorista etc. E tem o youtuber que dá dicas de livros.

Eu já tinha ouvido falar a respeito, mas confesso que tinha preguiça de encarar vídeos com dicas de leitura. Até que, poucos dias atrás, a Patrícia e eu resolvemos ver uns vídeos de dicas de leitura.

Foi numa madrugada de sábado. Tínhamos visto dois episódios geniais da série do Larry David. Estávamos bem nutridos. Decidimos, então, ver os vídeos com dicas de leitura no meu celular. Ficamos quase uma hora vendo dezenas de vídeos. Trocamoss olhares de perplexidade. Emitimos opiniões.

É triste dizer: encontramos um padrão. Padrão é bom pra um monte de coisa na vida. Dá estabilidade, não nos faz sair roendo a unha a cada instante. Mas há limites para o padrão. Ver gente do Brasil inteiro falando, nos vídeos, do mesmo jeito, com a mesma entonação de voz, recorrendo aos mesmos efeitos especiais e às mesmas piadas, convenhamos, é um pouco assustador. Um pouco, não: muito assustador.

Como eu prometi que em 2018 eu seria um homem útil para a sociedade, mostrarei para vocês, na semana que vem, o resultado de nossa pesquisa. É a chance que vocês terão para conhecer esse fenômeno -- o youtuber -- do mundo contemporâneo.