CULTURA

Festival de Berlim começa premiar nesta quinta-feira


Ao norte do Equador: concentração de riqueza, terrorismo, crise migratória. Ao sul, processos de impeachment, massacre dos nativos e ascensão neopentecostal. Uma das mais tradicionais mostras de cinema do calendário, o Festival de Berlim começa nesta quinta (15) acrescentando um elemento que vai além da sua tradicional politização: o imediatismo.

Essa urgência move o drama "Utøya 22. Juli", que reconstitui o massacre de 69 estudantes noruegueses em 2011 para tratar da ascensão da extrema direita na Europa.

O filipino Lav Diaz também disputa o Urso de Ouro, com "Season of the Devil". Nessa "opera rock" sobre os traumas do autoritarismo em seu país, o que parece vir à tona são alusões à linha dura do governo Rodrigo Duterte.

Descrito como "investigação sobre as patologias que produziram a sociedade mais rica da história", o documentário "Generation Wealth" consolida o trabalho de mais de duas décadas da fotógrafa americana Lauren Greenfield, especializada em registrar a vida opulenta de milionários.

Embora a urgência marque a 68ª edição dessa mostra de cinema, também há espaço para títulos mais atemporais. O americano Gus Van Sant conta a história de um jovem que fica tetraplégico após um acidente em "Don't Worry, He Won't Get Far on Foot". Seu conterrâneo Wes Anderson quer encher a sala de latidos com a animação "Ilha de Cachorros". E o francês Benoît Jacquot escala Isabelle Huppert na trama sobre dependência emocional de "Eva".

Brasil Urgente

Representado por sete longas, o Brasil pende mais para o lado do cinema urgente. Em seção paralela à competição principal, a brasiliense Maria Augusta Ramos exibe "O Processo", fruto primevo de uma leva de documentários sobre o impeachment.

Em 2016, a diretora cirulou por Brasília acompanhando os bastidores do flá-flu em torno da queda de Dilma. Como em suas obras, o filme não é escorado em entrevistas ou comentários; só observação.

"Isso não significa que seja um filme imparcial. Ele tem a minha visão sobre aquilo", afirma a documentarista, que busca aprofundar seu olhar sobre o "teatro da justiça". O título do filme, que alude à obra de Franz Kafka, não é por acaso. "[O impeachment] Foi kafkiano, sim", diz ela.

Trauma político similar levou o diretor paraguaio Marcelo Martinessi a rodar "Las Herederas" (as herdeiras), uma coprodução com o Brasil que está na competição principal do festival. Sob a chave da ficção, o seu filme absorve os ecos da deposição de Fernando Lugo da presidência do Paraguai, em 2012.

O ocaso é pano de fundo da história de uma mulher abastada que é forçada a circular entre os dois lados polos da sociedade de seu país. "Com o golpe, fiquei mais consciente do que está acontecendo no Paraguai, da condução do poder e da indiferença das classes acomodadas", diz o cineasta à Folha.

Ele crê que a profusão em Berlim de obras sobre as crises políticas na América do Sul possa ajudar a refletir sobre a "nossa história recente, que ao menos para mim ainda é indecifrável", afirma.

Já o diretor paulista Luiz Bolognesi ("Uma História de Amor e Fúria") deve aproveitar a voltagem política da mostra alemã para ler um manifesto assinado por lideranças indígenas. "Ex-Pajé", seu documentário, mostra os conflitos internos de um ex-xamã amazônico convertido por um pastor evangélico.

O cearense Karim Aïnouz ("Madame Satã") também retira do presente imediato o substrato para seu "Aeroporto Central". O documentário nasceu quando o diretor, residente em Berlim, passou a ver o noticiário local inundado de imagens sobre refugiados chegando na Alemanha. Seu filme aborda a vida dentro de um aeroporto berlinense que lhes serve de abrigo.

Esta será a última edição do festival capitaneada por Dieter Kosslick, que, a partir de 2001, imprimiu cara politizada à mostra, em oposição a congêneres mais pop, como Cannes e Veneza. Alguns sinais de distensão já se notam, como a presença de um novo jogador (a Amazon Studios, por trás do filme de Gus Van Sant) e de séries como "The Looming Tower".

Como perspectiva, Kosslick diz ver como um dos principais desafios da mostra "manter o amor pelo cinema" na era do streaming. "A experiência cinematográfica está sendo desafiada", diz à Folha. "Mas a experiência compartilhada da sala de cinema ainda é central para um festival."