OUTRO OLHAR

O viajante sem destino


Carlos Araújo
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 - ARTE: LUCAS ARAÚJO - ARTE: LUCAS ARAÚJO


No fim de uma tarde de sexta-feira de céu nublado, o viajante entrou no bar, pediu água, encostou o cotovelo no balcão e começou a falar:

"Eu sou um homem triste, tristíssimo, ao ponto de me sentir agredido pela alegria alheia. Não gosto de festa, não acho graça em piada, nunca tenho motivo para sorrir. Não há quem goste de mim e eu também não gosto de ninguém. Não gosto nem mesmo de mim. E isso não me preocupa. Não sou doce para que me queiram bem. Não sou rico para que me admirem. Não faço nada extraordinário para que sirva como exemplo de coisa alguma. Não digo nada inteligente para que me torne referência de seguidores. Não canto, não trabalho, não pratico esporte, não pago imposto. Nem ao menos torço para a Seleção na Copa do Mundo de Futebol.

Se eu fosse marcado por uma cor, vejamos, a cor cinza seria a mais adequada. Na estética das imagens, prefiro o branco e preto à ilusão das formas coloridas. Entendo a opção de Sebastião Salgado pelo PB nas fotos. Igual proposta inspirou "A lista de Schindler", de Spielberg. O PB traduz o mundo com fidelidade amarga. O colorido estampa uma beleza que engana e que não existe ao alcance da maioria das pessoas.

Houve um tempo em que eu gostava de rock, dos filmes de Godard, de literatura. Canções, filmes, livros. Sons, imagens, textos. Guitarras, câmeras, personagens. Tudo isso era uma promessa de redenção, sinal de esperança: abria caminhos de fuga, descortinava possibilidades de sensações mágicas e incompatíveis comigo. Eu era um cara que vivia na periferia de uma grande cidade, sem dinheiro, sem trabalho, sem acesso a nada que valesse a pena.

Mas tudo se revelou inútil. Nenhuma das formas de arte que eu amava foi capaz de me salvar das desilusões que me afligiram em diferentes momentos da existência. Abandonei o rock, o cinema, os livros. Só restaram a descrença, a desconfiança, a indiferença diante do mundo.

Houve outro momento em que canalizei as ilusões para a militância política. Movido pela presunçosa ideia de mudar o mundo, eu me meti em reuniões de partidos, protestos nas ruas, estudos sociais. Meus ídolos eram Guevara, Lamarca, Sandino. Meus inimigos eram Stalin, Hitler, Mussoulini. Grande idiota que eu era (e ainda sou, em todos os aspectos). O culto aos ídolos e a rejeição aos inimigos era uma bobagem sem limite. Não fazia nenhuma diferença ser contra ou a favor de uma causa. Eu, um ser totalmente sem expressão. E todas as causas estavam destinadas ao fracasso.

Arte, literatura, política. Nenhuma dessas invenções humanas me deu respostas convincentes sobre os problemas de existir, de ser feliz, de encontrar um sentido, um rumo a seguir. Pode ser que muitos consigam encontrar nessas coisas suas tábuas de salvação, suas válvulas de escape, suas razões para acreditar ou descrer de tudo. No meu caso, não serviram para nada. Abandonei tudo. Um dia rasguei todos os documentos, deixei minha casa sem me despedir de ninguém e peguei a estrada.

Viajo sem direção, sem roteiro, sem previsão de chegada em algum lugar. Meu destino é dar passos, um após outro, mesmo que seja em círculos. Mas vou em frente. Percorro lugares esquecidos. Encontro pessoas desamparadas, sem assistência, sem proteção. Vejo muita e vasta pobreza, de um lado, e farta e predatória riqueza, de outro lado. Vejo a base da pirâmide social se movimentar na tentativa de reduzir as grandes diferenças. Vejo o alto da pirâmide endurecer seus tentáculos de domínio e ampliar distâncias. Multiplicam-se as tragédias, as farsas. E nada muda.

Antigamente, esse estado de coisas me revoltava. Hoje, não sinto nada. Assisto a tudo com a indiferença do olhar estrangeiro. Ao longo da vida movi todas as forças da natureza e não fui capaz de corrigir as desigualdades. Não fui capaz de nada. Se não faço a diferença nem a meu favor, que diferença vou fazer para o bem dos outros? Sinto que sou um ser derrotado, destruído. Sou a versão humana das ruínas circulares imaginadas por Borges."

Nesse momento, o viajante respirou fundo. Aproveitei a oportunidade para perguntar quem ele era, qual era o seu destino. Ele respondeu:

- Não sou ninguém, não sei para onde vou.

Começou a soprar um vento forte e o céu escureceu, anunciando tempestade.

O viajante se retirou, em silêncio, sem despedida. E desapareceu na poeira da estrada.