OUTRO OLHAR

Prefiro ouvir os Beatles


Carlos Araújo
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 - ARTE: LUCAS ARAÚJO - ARTE: LUCAS ARAÚJO

Vejo um homem na televisão prometendo o paraíso para quem se render ao seu discurso e seguir os seus passos... mas desligo a tevê porque prefiro ouvir os Beatles.

Recebo no zap a mensagem de alguém se apresentando como salvador da pátria, garantindo que tem a melhor receita de combate à corrupção e à impunidade... mas prefiro ouvir Pink Floyd.

O sms registra a postagem de um cara que me descobriu não sei como só para dizer que ele é a criatura certa no lugar certo no exato momento de urgência que o país vive... mas prefiro curtir uma canção de Tom Jobim.

Pego na caixa dos correios um folheto que traz a carta de um desconhecido que, sem nenhuma modéstia, diz que estudou durante anos os problemas do país e pede um voto de confiança para ter a oportunidade de mostrar que a esperança ainda é válida e a justiça não tarda... e eu prefiro ler um poema de Drummond.

Abro uma revista e lá está a cara de outra criatura, sorrindo (de que será?), como numa selfie para o nada, e a título de legenda destaca-se a mensagem "trabalhando por você"... mas, para ser sincero, prefiro ler um poema de Allen Ginsberg.

Passando de carro numa avenida, deparo com o outdoor de uma figura que usa uma foto de vinte anos atrás para ilustrar uma mensagem de fé às mulheres por ocasião do 8 de março... e eu, repudiando o oportunismo marqueteiro, também desta vez prefiro empregar o meu tempo curtindo o som eletrizante dos Stones.

Abro o jornal e, na página de opinião, vejo o artigo do ocupante de um cargo público que, por ironia e farsa, responde a onze inquéritos policiais, todos por corrupção, e imediatamente a falta de credibilidade no que uma figura dessa tem a dizer me leva a virar a página, pior que isso, me leva a deixar o jornal de lado... pois prefiro ver um filme de Antonioni, certo de que ganho muito mais ocupando o meu tempo com a arte do gênio do cinema italiano.

Na padaria, encontro um amigo que começa a lamentar o destino do país, a falta de horizontes, a carência de alternativas a tudo o que está aí... e eu prefiro falar das musas da academia, as mais belas, que caminham na esteira com a graça de quem desfila na passarela.

Pra variar, entro no Facebook e deparo com a rotina de gente à esquerda e à direita se xingando, um querendo derrubar o outro numa guerra virtual, luta de todos contra todos e ninguém por nenhum... e nesse instante eu saio da rede social porque prefiro usar o meu tempo ouvindo Elis Regina.

Enquanto isso, o celular me surpreende com ligações de bancos que oferecem empréstimos com o tom cordial de quem distribui benefícios e, ao mesmo tempo, omitem o óbvio ululante de que aceitar o produto significa arcar com dívida que me fará refém de uma prisão financeira por longos anos... e em lugar de ouvir a emissária do banco eu prefiro prestar atenção ao sorriso de uma criança.

Depois, novamente na televisão, vejo uma propaganda oficial que diz que o país está mudando para melhor e começa a decolar com a força de um jato, eu me pergunto que país é esse e viro as costas, pois não reconheço esse país no desamparo e no deserto das ruas... e também porque prefiro contemplar o pôr do sol nessa tarde de fim de verão.

Ouço notícias de assassinatos, massacres, famílias aos prantos, silêncio de velório, tiros na noite, explosões de caixas eletrônicos na madrugada, emboscadas... mas confesso que tudo isso cansa demais, então prefiro me desconectar desse mundo e buscar algum sentido numa canção desesperada dos Ramones.

Sinto cheiro de esgoto ao me aproximar da margem do rio poluído, tenho calafrio ao parar no semáforo à meia-noite, fico desesperançado ao pensar para onde vão os impostos que consomem parte do meu salário... e tento esquecer toda essa vida pulsante porque não pensar em nada disso é a melhor saída.

Sem dúvida, é muito mais sensato continuar ouvindo os Beatles, Pink Floyd, Stones, Elis Regina, Ramones... é mais saudável ler a poesia de Drummond e Allen Ginsberg... é mais inspirador curtir a bela mulher caminhando na esteira da academia... é revigorante apreciar o filme de Antonioni, acreditar na utopia de que só o sorriso de uma criança pode salvar o mundo, sentir a maravilha da natureza no pôr do sol do verão que se despede.