Do fundo do coração
Carlos Araújo
[email protected]
Prezada Marielle: eu não a conheci, muitos brasileiros não a conheceram em vida, e mesmo assim a brutalidade que calou a sua voz provocou uma comoção popular que atravessou fronteiras.
Foi o dia em que a dor foi além do limite suportável e se elevou do pessoal para o coletivo, do indivíduo para a multidão, da lágrima para o protesto e o clamor por justiça.
A dor ganhou dimensão grandiosa porque você era a voz solitária que representava os anseios e as esperanças de muita gente que não consegue ser ouvida.
A dor repercutiu de forma tão dilacerante porque a sua história de vida era um exemplo de vibração, de coragem, de quem faz a diferença na sociedade brasileira. E a perda de pessoas como você significa uma luz que se apaga.
Todas as mulheres que choraram a sua morte se sentiram Marielles. E todos os homens que compartilharam o sofrimento tiveram a indescritível sensação de que de repente tinham se tornado seus irmãos.
E as Marielles e esses irmãos na dor se encontraram em praças e avenidas do Brasil e do exterior e reagiram com homenagens, orações, abraços, angústia estilhaçada. Foi o dia em que o luto se conjugou com gritos de luta por direitos humanos.
A tragédia que tirou a sua vida é a tragédia de todos nós, brasileiros, que em tempos de paz convivemos com números de homicídios que superam muitos países em guerras.
Os tiros que abateram a sua figura frágil e querida por muitos também liquidaram a propaganda oficial de combate à violência por meio do uso de métodos igualmente violentos, típicos de guerra.
O ataque que interrompeu a sua história resgatou a tradição de brutalidade que também abateu ativistas como Chico Mendes, Dorothy Stang, Vladimir Herzog, Santo Dias, Manoel Fiel Filho, Zuzu Angel, Tiradentes. E tantos outros que ousam bater de frente contra criaturas que nunca se elevam além do tamanho rasteiro da covardia humana.
Triste ironia: a violência que você denunciou acabou por fazer de você mais uma vítima. Triste constatação: você destoava dos políticos tradicionais, tinha muitos sonhos de transformação da sociedade e lutava por eles com a credibilidade de poucos.
Com pesar, desconfio que o Brasil não merecia você. O Brasil que hoje amarga a sua perda não foi capaz de lhe dar proteção, de evitar o seu assassinato, de conter a mão covarde que precisou se esconder nas sombras para puxar o gatinho de uma arma.
Também, pudera. Você nasceu numa sociedade excludente, que não aceita e não perdoa quem supera os limites de classe social. Você se projetou como alguém que ultrapassa as barreiras da senzala e invade a casa-grande levando no peito as marcas da sua origem pobre, da resistência do povo negro, da favela como símbolo e metáfora de um país que se imagina como nação moderna sem ter se libertado da estrutura enraizada no século 19.
Você se lançou como símbolo de protesto por todas as vítimas assassinadas no Brasil, todos os dias e todas as horas, desde o motorista Anderson, que estava na sua companhia na hora do ataque, até o empresário que também foi executado naquela mesma noite num assalto diante do filho de cinco anos. E nos dias seguintes outros inocentes continuaram a ser abatidos.
Você se vai e entra para a história como símbolo de um Brasil que fracassou, que não foi além do discurso, que se aproxima do México no que ele tem de bárbaro e assustador. Acham que o seu dramático fim pode servir para reflexão e pode se converter em divisor de águas no debate dos direitos humanos. Chega de achismo, chega de reflexão. Não dá para elaborar discurso quando a prática é de contar cadáveres todos os dias nas cidades brasileiras.
Para qualquer lado que se olhe, o que se vê é desamparo, descrédito, pessimismo. A propaganda oficial pode até dizer o contrário, mas ela tem o desconto de ser apenas propaganda e cumprir o papel que lhe convém como porta-voz da casa-grande. Sua morte, Marielle, enterra toda propaganda, oficial ou particular. A realidade é perturbadora demais e não pode ser manipulada.
A sensação que fica, prezada Marielle, é de que a sociedade brasileira chegou a uma encruzilhada. A grande dúvida é saber para onde seguir. Que caminho tomar. Em quê acreditar. De que forma encontrar sentido para um cotidiano árido, selvagem, sem salvação. É como se estivéssemos numa trilha escura e sem o apoio de um guia.
Marielle, você é um símbolo do Brasil insondável e profundo.
Marielle presente, hoje e sempre.