ARTIGOS

100.ª


José Milton Castan Jr.

Estava ali toda esticada. Emoldurada por fita crepe que a mantinha presa à porta de madeira envernizada, cumpria agora à velha folha de jornal, não mais a missão de informar, mas a seu cargo proteger a porta de madeira dos respingos de tinta, que inevitavelmente seguiriam aos movimentos de braço e pincel do pintor de paredes.

Por sua vez cumpria ao pintor... pintar. Sentia-se cansado pela rotina, pelo duro trabalho, mesmos problemas e um não sei o quê constante.

A folha de jornal, ainda que fixada aleatoriamente, respeitava posição de leitura, e o pintor, ainda que não desejasse, teve sua atenção chamada para o título de um artigo impresso. O título um tanto inusitado que encimava o texto era: "100.ª". Isso mesmo, apenas um número ordinal. Talvez o pintor não soubesse o que seria um número ordinal, contudo aquele "100.ª" dava-lhe a certeza de que algo acontecia pela centésima vez.

O texto seguia assim:

"E assim chegamos hoje à 100.ª crônica! Portanto, bom momento para pausa, reflexões e considerações..."

O pintor já ia desistindo da leitura, mas a palavra "pintura" prendeu sua atenção. E assim continuava o texto:

"Uma pintura! A crônica pode ser entendida como um tipo de pintura, onde palavras são tintas a ocuparem os espaços vazios de folhas cor papel-jornal. Ainda que as palavras estejam todas em tinta preta, suas combinações fazem o colorido."

O pintor olhou para sua lata de tinta. Logo voltou os olhos para a folha de jornal e continuou lendo:

"E quem as lê junta rabiscos, denominados grafismos, com significados. Juntando significados com outros significados pode chegar a conclusões por vezes inusitadas..."

Parado em pé em frente a porta encoberta com aquela folha de jornal, o pintor quase não entendia o que lia, mas sentia o que lia. E pensou à sua maneira que seu trabalho consistia muitas vezes em cobrir paredes novinhas com tintas coloridas, dando-lhes vida. Outras vezes cobrir marcas de velhas paredes, transformando-as. Certamente já havia isso feito mais de 100 vezes. Então deu-se a mágica, pois o pintor descobriu o sentido de seu trabalho. E agora não mais um trabalho mecânico e sem sentido, onde apenas o resultado era obter seu sustento e ganha-pão. No pintar havia agora novo significado, outra dimensão. Voltou ao trabalho de pintar, com alegria.

Pois é meu caro leitor. De fato, chegamos hoje à nossa 100.ª crônica. Cem crônicas escritas exclusivamente para o jornal Cruzeiro do Sul. Quinta sim, quinta não, sem falhar sequer uma única vez, desde 2014. Dia de comemorar. Dia para refletir. Dia de agradecer.

Crônicas, ainda que não tenham o glamour dos grandes gêneros, ocupam espaço importante, possibilitando ao cronista e a partir de um recorte do cotidiano, despretensiosamente humanizar "e essa humanização lhe permite recuperar com a outra mão uma certa profundidade de significado", como nos ensina Antonio Candido.

A estorieta acima é um exemplo disso. O pintor, como se ungido, entendeu melhor seu trabalho, encontrou significado e seguiu melhor.

A crônica possibilita uma breve parada no cotidiano para refletir, sem necessitar de grandes hipérboles filosóficas. É simples e coloquial.

Ao escrever o cronista materializa e externa uma força criativa interior que urge emergir. Sinto exatamente isso!

Vai crônica minha, segue teu caminho. Cumpre tua missão que por vezes é fazer nada, por outras engraçar um dia desengraçado, quem sabe propiciar uma pausa, um suspiro. Vai crônica minha, cumpre teu papel, e se possível nos proteja da desumanização causada pelos frenéticos e insanos rodopios do cotidiano que cismam em nos levar sempre ao mesmo ponto perdido no espaço e no tempo.

Grato ao jornal, ao excelso master que em 2014 me deu a oportunidade do espaço, aos editores e funcionários!

Contudo o mais relevante: há um leitor! Há você leitor! É para você que escrevo. Obrigado pela "lerência" (não encontrei uma palavra que designe o mesmo que audiência para leitores, então criei lerência!).

Agradecem também: Seu Malaquias, Mirinho e D. Querência, companheiros meus de tantas crônicas.

Até a próxima quinzena!

José Milton Castan Jr. é psicanalista e escritor - www.psicastan.com.br