O salão dos passos perdidos
Carlos Araújo
carlos.araú[email protected]
Admiro as pessoas que ditam regras aos outros. Parecem ter o dom da sabedoria, em contraste absurdo com a minha capacidade cada vez mais reduzida de entender as coisas.
Pessoas que ditam regras correm o risco de elas próprias não cumprirem nada do que pregam. Desejariam que os outros sigam os seus valores como forma de compensação para suas próprias fragilidades.
Pessoas que ditam regras correm o risco de serem atropeladas pela realidade. Como desejar que outros façam o que eu digo se eles, por natureza, são muito diferentes entre si? Como aplicar códigos de conduta para uma sociedade formada por criaturas com perfis que vão de um extremo a outro?
Muitas pessoas são boas, generosas, solidárias com a dor humana. Mas muita gente também é má, cruel, indiferente ao sofrimento alheio. Impossível imaginar que uma ideia seja assimilada igualmente por seres tão conflitantes.
As leis pulsam nesse campo de discrepância. Dizem, na teoria, que elas são feitas para todos. Mas não são cumpridas universalmente porque cada um tem modos diferentes de ser e de viver.
O trabalhador ganha salário com o suor do próprio rosto, mas o ladrão acha que não precisa trabalhar para viver e prefere o roubo ao expediente de várias horas diárias de produção na fábrica, no comércio, no escritório.
Então, para fazer cumprir as leis, a sociedade criou os tribunais. Códigos jurídicos foram elaborados. Compuseram-se legislações que, na prática, são ordens a serem cumpridas. E as ordens se impõem com punições para quem fugir delas.
A medida produziu efeitos parciais. Os tribunais, como instrumentos de justiça, não tinham poder de alcance universal. Ser rico fazia grande diferença a favor de quem recorria às togas. Ter bons advogados custava muito caro e essa era condição necessária para ter direito a recursos e explorar as brechas de sentenças judiciais. Quem não tinha dinheiro ficava ao sabor dos ventos, como um barco à deriva.
Criou-se então a política, como proposta moderadora de diferenças. E os contrários não se entenderam. Nada de convergência. A política favoreceu uns, condenou outros, ignorou tantos mais. Como resultado, surgiram camadas de privilegiados, de desamparados, de desiludidos.
De tempos em tempos, emergiam mágicos com ideias para unificar os diferentes nessa sociedade caótica. Prometiam coisas inimagináveis, desde fazer chover até controlar o calor do sol para quem acreditasse neles. Sabiam que tudo era mentira, mas insistiam na magia como método para confrontar a realidade.
De resto, quando a política não é suficiente para unir consciências, recorrem-se aos tribunais. E nem assim as grandes questões são respondidas plenamente. As togas reproduzem as divergências existentes nos estratos sociais. Tomam decisões com base em códigos jurídicos. Ditam regras. Exercem poder absoluto sobre tudo e todas as coisas, mesmo que seus integrantes reconheçam que suas atuações são estilhaçadas por falhas. E não poderia ser de outra forma, já que esses grupos também são formados por pessoas.
Desse modo, embora imperfeitos, os tribunais ditam rumos para a política, fazem história, subvertem a existência. Estão de tal forma presentes na vida dos cidadãos, que inspiram obras de arte.
Os tribunais são os centros dos acontecimentos nos romances "O estrangeiro", de Albert Camus, e "O processo", de Franz Kafka, e no filme "Glória feita de sangue", de Stanley Kubrick. Como símbolos de justiça, são retratados nessas obras-primas da literatura e do cinema como teatros do absurdo.
Homens podem errar em avaliações contaminadas por ideologias, mas obras de arte dificilmente cometem equívocos e é por essa qualidade que se tornam clássicas. Os tribunais julgam, mas também são julgados pela arte, pela história, pela própria ideia de justiça que representam.
Não é por acaso que o ambiente interno de um tribunal em São Paulo é conhecido como "o salão dos passos perdidos". Rótulo enigmático, mas que diz muito. Evoca viagem a um labirinto. Uma viagem com roteiro frágil, sem indicação de destino. Talvez essa seja a melhor tradução para a justiça dos homens.