OUTRO OLHAR

Teatro universal do poder absoluto


Carlos Araújo
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 - ARTE: LUCAS ARAÚJO - ARTE: LUCAS ARAÚJO

Se as notícias que chocam o mundo fossem matéria bruta para o teatro, seriam o quê? De comédia a tragédia, de musical a farsa rocambolesca, de ópera a baile de máscaras, poderiam ser tudo isso e muito mais.

Para começo de conversa, nada mais falso do que o anúncio do ditador Kim Jong-um de paralisar imediatamente os testes de mísseis e bombas nucleares. Quer seja para sair do isolamento ou para melhorar as condições do povo norte-coreano, castigado por sanções internacionais, o fato é que tentativas de explicações dessa natureza não convencem nem as pedras.

Ao longo de todo o ano passado, Kim e Donald Trump levaram o mundo a um novo estado de tensão em grau elevadíssimo. Pela primeira vez desde a Guerra Fria, os dois inimigos conduziram o planeta à beira do abismo nuclear.

Passaram o ano todo em troca de insultos dignos de briga de boteco da esquina. A cada ameaça disparada um contra o outro, as pessoas ficavam tensas. Era aterrorizante a expectativa de apostar em qual deles ousaria disparar o primeiro míssil.

Agora, para espanto de todos, Kim e Trump dão sinais de que abrirão diálogo. Até preparam um encontro de cúpula. Menos mau. Mas o Ocidente já começa a desconfiar da ensaiada diplomacia de Kim. Difícil acreditar que dois inimigos desse porte possam merecer a confiança de quem quer que seja. Possivelmente nem eles mesmos acreditem um no outro. Agem como atores de um teatro global marcado por intolerância, frieza, crueldade.

Em outro palco, as relações de poder são travadas por Trump e o ditador russo Vladimir Putin. Ambos são representantes do mito da pós-verdade. O russo ajudou a eleger o norte-americano. Houve ocasiões em que se cumprimentaram cordialmente. E agora medem forças por conta de interesses na catástrofe da Síria.

O foco na Síria adiciona o envolvimento da França e do Reino Unido, tradicionais aliados dos EUA, e o grupo se uniu para atirar uma chuva de bombas nos arredores de Damasco. A justificativa da represália ao uso de armas químicas pelo governo sírio não cola.

Na noite do bombardeio, mais uma vez o planeta ficou em suspense. Aguardava-se a reação de Putin, aliado de Bashar al-Assad. E o perigo de uma tragédia maior ficou suspensa, ao menos por enquanto.

Nesse mar de sombras, estranho assistir à indignação de Trump com o suposto uso de armas químicas contra o povo sírio. Como se ele se importasse com estrangeiros. Como se houvesse diferença entre gases e bombas. Como se explosões fossem suaves em comparação com substâncias que matam por asfixia.

De quebra, como se tudo isso fosse pouco, Trump entra em guerra comercial com a China. Desta vez, encontra um adversário com poder equivalente, o líder chinês Xi Jinping. Aí a conversa é em outro tom, preza pela diplomacia, diferente da ameaça de "fogo e fúria" feita por Trump ao ditador norte-coreano.

E o teatro não é só internacional. O Brasil tem participação de destaque nessa representação da realidade. Para nosso desconforto, as feridas internas são proporcionais às externas em gravidade e preocupação.

O Brasil é hoje o país com maior número de homicídios do mundo. Foram 61.283 mortes em 2016. Essa contabilidade macabra é muito próxima da média anual de mortes na guerra civil da Síria. Equivale a um tapa na cara dos brasileiros que comemoram a utopia de viverem num país pacífico. A guerra aqui é bárbara, silenciosa, e só é sentida pelas vítimas.

O Rio, vitrine do País, é um cenário triste projetado no palco brasileiro. A intervenção militar na segurança pública não conteve os crimes. Os registros de violência aumentaram. A sensação é de que os cariocas vivem num beco sem saída.

Todo esse espectro é o teatro universal do poder absoluto que poderia ter sido imaginado por Shakespeare, Ionesco, Beckett. Crueldade, absurdo, falta de sentido. Painel indecifrável. Campo minado. Não dá para saber onde termina a verdade e começa a mentira. Nem mesmo é possível identificar os limites entre presente, passado e futuro. Que se abram as cortinas para o próximo ato.