OUTRO OLHAR

Paralelepípedos arrancados das ruas de Paris


Carlos Araújo
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 - ARTE: LUCAS ARAÚJO - ARTE: LUCAS ARAÚJO


Truman Capote escreveu certa vez que a arte "não é água destilada: impressões pessoais, preconceitos e seletividade subjetiva comprometem a pureza da verdade cristalina". Autor de "A sangue frio", um clássico do jornalismo, Capote, embora referindo-se à arte, apresenta com essa teoria um viés alternativo para uma reflexão sobre Maio de 68.

O raciocínio do autor norte-americano sugere que não é possível dissociar do perfil do indivíduo o que ele pensa e como enxerga a revolta dos estudantes e trabalhadores franceses 50 anos depois. As formações de cada um, tão diferentes no espectro ideológico, determinam as visões sobre os fatos históricos.

Maio de 68 foi um dos acontecimentos centrais daquele ano que entrou para a história com explosivo potencial de influência, intervenção, esperança. Paralelepípedos das ruas de Paris foram arrancados como símbolos de protesto contra toda forma de injustiça e intolerância. Jovens tomaram conta das ruas. Havia disposição para o risco, a coragem, a desobediência civil.

Intérpretes daquela geração identificam no Maio de 68 o embrião de movimentos feministas, LGBTs e de liberdade sexual. Mas essas frentes de atuação já existiam desde muitos anos antes em várias partes do mundo. Certamente as revoltas de Paris contribuíram para dar impulso a esses movimentos, mas eles já existiam.

Maio de 68 conquistou importância extraordinária porque foi o símbolo de uma geração fervilhante. A orelha do livro "1968 -- o ano que não terminou", de Zuenir Ventura, resume o clima da época: "Foi o melhor dos tempos e o pior dos tempos, a idade da sabedoria e da insensatez, a era da fé e da incredulidade, a primavera da esperança e o inverno do desespero. Tínhamos tudo e nada tínhamos."

Surpreendentemente, estas são palavras de Charles Dickens para descrever o fim do século 18 na Europa. E serviram como luva para 1968. Ano em que ainda existiam os Beatles, a Guerra do Vietnã, a Guerra Fria entre EUA e URSS. No Brasil, foi o ano do AI-5.

Todo esse cenário era um caldo de cultura para reações extremas, explosivas, incontroláveis. Paris, com sua tradição de revoluções, ocupou esse espaço. Maio de 68 foi uma primavera parisiense, uma paixão coletiva e entrou para o seleto grupo das grandes utopias.

Os resultados levam a essa conclusão. O presidente francês da época, Charles de Gaulle, afastou-se após as revoltas, convocou eleições e voltou ao poder consagrado pelo voto popular, apesar de ter se sustentado no cargo por pouco tempo.

Daniel Cohn-Bendit, o estudante mais conhecido como líder das revoltas, é hoje um comportado membro do Partido Verde Alemão e sua única atuação digna de nota atualmente é apoiar o conservador presidente francês, Emmanuel Macron. Em recente entrevista, Cohn-Bendit recomendou que "esqueçam Maio de 68". Outros líderes estudantis de menor notoriedade, como Alain Geismas, Jacques Salvageot e Romain Goupil, estão esquecidos.

Um ex-revolucionário francês, Régis Debray, autor de "Revolução na revolução", solicitado pelo "El País" a comentar o Maio de 68, saiu pela tangente: "Não me interessa. Nada." Na sua opinião, falar alguma coisa significaria "um exercício de intelectual francês". Justamente ele, que via no Maio de 68 a origem do liberalismo moderno.

Essas reações de negação por parte de protagonistas daquela geração não acontecem por acaso. As comemorações do Maio de 68 ficaram muito abaixo da importância que elegem para a agitação daquele ano marcante. Restringiram-se praticamente às pautas jornalísticas e de avaliação histórica. Muito pouco para um movimento que arrancou paralelepípedos das ruas de Paris.

Além do mais, 50 anos passados, as comparações com o mundo daquela época também são eloquentes como reflexões sobre o legado da geração que gritou "é proibido proibir" e acreditou na viabilidade da "imaginação no poder".

Não há mais Guerra do Vietnã, mas muitas outras guerras se sucederam e a humanidade ainda sofre as ameaças de um conflito nuclear. O mundo perdeu a graça. Não há mais encanto. Os Beatles não existem mais. Não restam nem as utopias que tanto embalaram os sonhos de várias gerações.