OUTRO OLHAR

Em busca de um protagonista


Carlos Araújo
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 - ARTE: LUCAS ARAÚJO - ARTE: LUCAS ARAÚJO


Biografias habitualmente vão muito além das histórias dos biografados. Mais do que a narrativa de vida de indivíduos, biografias refletem os conflitos e as contradições de uma época, de um lugar, de um povo.

Isso acontece porque cada ser é produto de uma cultura, um comportamento, uma ideologia dominante. E esse conjunto de variáveis acaba por definir os passos, as ideias e as atitudes de pessoas e grupos na sociedade.

Como exemplo, a biografia de Assis Chateaubriand em "Chatô, o Rei do Brasil", de Fernando Morais, traça um painel da história do País na primeira metade do século 20 e até a década de 1960. O protagonista ocupa o centro da narrativa, mas os acontecimentos históricos exercem influência direta nos rumos de sua vida e por isso são esmiuçados pelo autor para dar profundidade à obra.

Em outro exemplo, ocorrido na década de 1960, a renúncia do pugilista Muhammad Ali ao recrutamento militar e sua famosa declaração de que os vietcongs não lhe tinham feito nenhuma provocação, para além de uma atitude individual, são gestos que significaram manifestações de protesto contra a Guerra do Vietnã. Ele sofreu as consequências, como a perda do título mundial dos pesos-pesados (que lhe foi confiscado), mas entrou para a galeria das polêmicas mundiais. Era mais do que um lutador de boxe. Era uma figura histórica.

A vida de Ali mostra como uma biografia, tal como um míssil, pode atingir alvos de longo alcance. A trajetória do maior pugilista de todos os tempos dialoga com os conflitos raciais, a violência, a política autoritária, o poder e a glória a qualquer custo. Tudo a ver com o mar de intolerância que domina os EUA e o mundo inteiro.

E não podia ser de outra forma. Nos EUA, o boxe nasceu da escravidão. Em seu livro "O rei do mundo", o jornalista e escritor norte-americano David Remmick conta que antigamente latifundiários do Sul, com o intuito de se divertir e apostar, promoviam lutas para os seus escravos mais fortes. "Os escravos usavam pescoceiras de ferro e lutavam quase até a morte", descreve Remmick.

A invenção da segregação no boxe foi atribuída ao primeiro campeão da era moderna, John L. Sullivan. Ele se recusou a enfrentar desafiantes negros. Após o reinado de outro ídolo negro, Jack Johnson, seguiu-se uma era de predominância de campeões brancos. Eles recusavam-se a lutar com negros. Esse ritmo só foi alterato em 1937, quando Joe Louis derrotou Jim Braddock. Louis foi ídolo de gerações de futuros pugilistas, entre os quais Muhammad Ali.

São histórias dramáticas, carregadas de suspense e brutalidade, mas que fazem parte de um país cortejado como a maior democracia do planeta.

Numa transposição para o Brasil, tomando por base a biografia como instrumento da história, qual é o personagem atual que traduz o País em todo o seu espectro sublime e grotesco? Será um expoente da política, do esporte, do empresariado, do judiciário, das artes, da televisão? Será alguém que represente os brasileiros a partir de discursos, de atitudes ou de máscaras?

Definido o personagem, o desafio seguinte é saber quem terá a disposição de contar a história do nome selecionado. Não basta pesquisar, entrevistar, escrever. Biografias também são como campos minados. Podem contrariar interesses, revelar coisas obscuras, derrubar mitos, julgar vilões. Necessário comparar versões, remover a poeira de documentos, sistematizar informações. O trabalho é gigantesco.

Num país que produziu tanta luminosidade, de Zumbi dos Palmares e Machado de Assis, não será difícil encontrar um protagonista que seja atualmente a cara do Brasil.

Num mundo dominado pelos estilos Donald Trump e Vladimir Putin de ser, cada um tem o seu personagem e se sente representado por ele. O problema é que não há mais Muhammad Ali. Não há mais heróis.

Difícil imaginar um protagonista brasileiro com perfil para fazer de sua história um grande painel desses tempos trágicos, sombrios, obscenos.