OUTRO OLHAR

Quase noite


Carlos Araújo
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 - ARTE: LUCAS ARAÚJO - ARTE: LUCAS ARAÚJO


Não era dia, não era noite. Era aquele instante em que a claridade e a escuridão parecem negociar um deslocamento.

No horizonte, o sol se escondeu mas ainda projeta luz no céu, num contraste com zonas cor de chumbo que avançam e refletem sombras nos blocos de nuvens.

Todo fim de tarde esse milagre da natureza se repete. As alterações ficam por conta do clima. Em dias de céu nublado, a tarde se deixa envolver mais rapidamente pelo escuro inevitável. Nos últimos dias, o contraste de luzes tem prevalecido. Evidência de que a mesmice pode ser uma beleza mágica.

Uma mente aberta a todas as possibilidades diria que a composição dessa hora parece obra de um artista cósmico. A substituição da tarde pela noite é como uma das duas esquinas do dia. O outro momento em que o fenômeno acontece, totalmente oposto, é quando a madrugada se esvai diante do nevoeiro da manhã.

O que diferencia os dois momentos é a matéria de composição. Pela manhã habitualmente as pessoas estão desprevenidas, sem o vício da continuidade, quebrada pelas horas de sono. Já quando a noite chega, tudo é previsível, nada surpreende. Ou não.

Nessa hora, muita gente sai do trabalho e volta para casa de ônibus, de metrô, de bicicleta, a pé, de carroça, até mesmo de avião. Há uma previsibilidade de retorno a um abrigo, de conclusão de mais um dia vivido. As sensações se desarmam, baixam a guarda, como se houvesse uma combinação voltada para o recolhimento, uma sintonia entre o compasso humano e o ritmo natural das coisas.

A marca dessa hora é a de movimento. Hora do "rush", como dizem. Pontos de ônibus cheios, plataformas de estações lotadas, ruas congestionadas. Jogo de paciência e ansiedade. Atenções voltadas para mil coisas diferentes: para uma vitrine, um trecho de rio, uma cara que se parece com alguém conhecido.

Há um jovem que vai, na contramão de um adulto que vem, uma criança parada, alguém que calcula o primeiro passo. A passagem do tempo é a única medida unificadora dessas criaturas. Elas vão a destinos diferentes, impulsionadas por razões distintas, mas se movem dentro das mesmas camadas de segundos e minutos. Nos perfis são desiguais, nos sonhos e desejos são contrastantes, mas são parecidas nas relações com o tempo.

E se organizam como num pacto de adaptação coletiva ao ambiente. Embora tipificadas pelo individualismo, compartilham as calçadas, as escadas, os vagões, as rampas de acesso. Demonstram capacidade de viver em grupos. Há dúvida se agem assim por vocação ou necessidade de sobrevivência. Ou as duas coisas. Ninguém pode se considerar único ou independente num mundo em que até o dia precisa da noite para ter algum sentido.

A beleza também está na multiplicidade de sensações. Muita gente percebe e sente essa hora em que o dia se vai e a noite chega. Há quem não perceba essa virada. Há quem curta esse ponto da passagem do tempo com a sensibilidade da alma que degusta poesia. Há quem não sinta nada, o que é menos que indiferença.

Há quem use essa hora para ouvir música, para tomar uma taça de vinho ou para ver televisão. Certamente há indivíduos que, no setor de desembarque dos aeroportos, aguardam com corações apertados pessoas especiais que chegam nos voos das seis. As emoções pulsam, indiferentes ao mecanismo físico da natureza que inventou essa hora em que o sol se despede e a noite marca presença.

E os desdobramentos não se sucedem apenas no plano da normalidade. A virada do tempo não é algo desprovido de riscos. Existem os temores, as armadilhas, os perigos nos caminhos percorridos. Assaltos, tiroteios, chacinas fazem parte da rotina num mundo que insiste em ser assustador.

Muitos, absorvidos por ilusões de proteção, evitam sair de casa. Esquecem que ladrões e assassinos pulam muros, arrombam portões, rompem falsas blindagens, usam máscaras de ocultação das vilanias, até mesmo falam na televisão.

Há onze anos, no silêncio de uma hora como essa, um desastre de avião chocou o país. Tragédias, que independem da harmonia da natureza, também acontecem e são devastadoras.

A poesia dessa hora leva ao encantamento da alma, mas não consegue barrar notícias ruins. Bombas podem ser acionadas por inimigos ocultos. O desafio é saber se livrar das explosões nesse momento em que os mistérios da existência se dissolvem na moldura de uma quase noite.