OUTRO OLHAR

Síndrome de Mad Max


Carlos Araújo
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Impossível dizer em que ponto começava a fila para o abastecimento de gasolina e etanol. O homem de camiseta verde, que dirigia um Fusca amarelo, estava em meio à confusão de carros e perdeu mais de uma hora até perceber que deveria entrar numa fila para acessar a fila propriamente dita. Calculou, entre aflito e desanimado, que a espera seria de mais quatro horas. Como o tanque já estava na reserva, o jeito foi respirar fundo e ligar o botão da paciência.

O motorista do carro da frente, um Ford amarelo, era um cara de óculos e tinha uma dose de paciência em menor quantidade. Estava nervoso. Achava absurda uma situação como essa e sua indignação era estampada no rosto marcado pelas rugas. Em 70 anos de vida jamais tinha visto uma coisa dessa. Um desrespeito, resmungava, voltando suas baterias críticas contra o governo.

O carro atrás do Fusca verde era o de uma estudante que acabava de sair da faculdade e, antes de voltar para casa, resolvera correr o risco de entrar na fila. O tanque do seu Fox azul estava baixo e ela não queria ficar a pé ou ter que usar o ônibus para cumprir suas agendas do dia seguinte. E o transporte público também estava prejudicado, com poucas linhas em operação. Tudo isso é um horror, pensava a estudante. Sentia-se presa, refém do caos, sequestrada pelo descontrole universal das ruas, das estradas, das cidades.

Muito atrás, um motoboy estava estressado só de imaginar que podia não conseguir abastecer a sua moto branca. Se isso acontecesse, ficaria um dia sem trabalho, um enorme prejuízo. Pagava a prestação da moto e não sobrava quase nada do faturamento mensal. Um dia parado prejudicaria a programação do mês inteiro. Mas vamos ser otimistas, pensou, acreditando no milagre de abastecer a moto e garantir trabalho no dia seguinte.

Em outro ponto da fila, duas jornalistas ocupavam uma Saveiro com estampas em estrelas nas portas e no capô. Pareciam muito amigas. Estavam animadas, apesar da situação difícil para todo mundo. Riam. Destoavam das caras tristes das outras pessoas. Recordavam uma festa no fim de semana. Deviam estar se divertindo bastante porque chegaram às gargalhadas.

Outro motorista, no volante de um Golf preto, viu as duas jornalistas quando ia passando e pensou que nesse mundo tem louco pra tudo. Onde já se viu, ele julgou, quem vê essas mulheres de longe pensa que elas estão rindo de nada e isso só deve ser coisa de maluco.

O motorista do Golf estava numa fila dupla, paralela à fila que dava volta no quarteirão para levar os motoristas às bombas de combustíveis, e só então percebeu que seguia um comboio em direção à última vaga na fila principal. Era a fila para entrar na fila. Não acredito, pensou. Acredite, falou a sua consciência. E agora, fazer o quê? Na primeira oportunidade virou à esquerda e fugiu da muvuca. Tinha ainda quase meio tanque de gasolina, quem sabe ainda tivesse autonomia para dois dias.

O cara do Golf preto pensou em "Mad Max", em "Walking dead", em mundos apocalípticos. A terra está devastada e agora as pessoas disputam combustíveis a tapa, comparou. Não demoraria muito e haveria brigas. Acabava de receber vídeos no celular que mostravam gente quebrando postos de combustíveis, jogando pedra na polícia, arrebentando carros a pauladas nas ruas.

Se a gente pudesse prever isso um mês antes, diria que era impossível, que era obra de ficção, pensou o cara do Golf. Era como se a realidade fosse irreal. Como assim?, ele se perguntava, perplexo. Vale perguntar que tipo de nação somos e que direção tomar, acrescentou, citando a frase dita por Bobby Kennedy há 50 anos, dois meses antes de ser assassinado. O Brasil não é os EUA, mas a pergunta cabia como uma luva.

O momento mais difícil foi quando o frentista de macacão vermelho teve que informar ao homem do Fusca, à estudante, ao motoboy, às duas jornalistas, ao sujeito do Golf, ao povo todo na fila, que os combustíveis haviam acabado e as bombas estavam secas.

O frentista tremeu nessa hora. Temendo a revolta dos motoristas que aguardavam há horas na fila, encolheu os ombros, franziu a testa, fechou os olhos. Não tinha mais o que fazer. E preparou-se para correr caso quisessem descontar na sua pele a indignação do país inteiro.