OUTRO OLHAR

A bola caprichosa


Carlos Araújo
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 - ARTE: LUCAS ARAÚJO - ARTE: LUCAS ARAÚJO

Começo a rolar com o apito do juiz, a partir do centro do campo, e me desloco no gramado. Todos os olhares focam em mim. Todas as expectativas, todas as projeções, todos os planos, dependem agora de minhas evoluções. Ninguém sairá impune dessa grande arena de espetáculo. E eu sou o centro das atenções.

Miram um certo craque, miram outro craque, mas se esquecem de que eles só estão nesse nível porque sabem lidar comigo com habilidade. Enquanto os jogadores são os coadjuvantes, eu sou a protagonista. Marco presença em todos os lances, todas as faltas, todos os cartões, todos os pênaltis, todos os gols.

Messi, Neymar, CR-7 e companhia levam a fama como astros, mas precisam de mim para serem geniais. É como se eu fosse uma escada: sem os meus degraus, não chegariam a lugar nenhum. A sintonia que existe entre o jogador e a bola mostra que um não sobrevive sem o outro, um é o significado do outro, um pode ser relegado ao abandono se o outro desistir do jogo. Agora, não é possível retroceder.

Minha forma redonda facilita o deslocamento. Sou lançada em passos curtos, toques à meia distância e passes longos, que atravessam o campo de um ponto a outro. Vou sempre na direção do gol. Os jogadores têm a ilusão de que me dominam, mas não sabem nada.

De repente, não entendem porque um chute bem colocado não me introduz no ângulo superior direito do travessão. Nesses casos, eu demonstro que tenho vontade própria. Negocio a intervenção do vento na minha trajetória e faço uma curva que me leva para fora da trave.

Com as mãos na cabeça, em atitude de desespero, as pessoas não acreditam que eu não possa ter ido ao fundo da rede com o chute do craque. Acho que eu sou caprichosa ao ponto de às vezes me negar um traçado imposto pelos pés de alguém. "A bola não quer entrar", dizem, como justificativa para a incompetência. Pelo menos me poupam quando querem lamentar os prejuízos de um lance perdido. Criticam o erro do técnico, a desatenção dos jogadores, mas nunca me culpam pelos desastres em campo.

Também não me cumprimentam pelas vitórias. Nessas horas, acham que são capazes de qualquer coisa sem mim. Esquecem que as regras do futebol levam em conta a minha presença como peça central de todo esse cenário que faz os torcedores vibrarem de alegria e chorarem de tristeza ao mesmo tempo.

Para uns, eu sou o símbolo da felicidade. Para outros, eu sou o limite da dor.

Faço parte das duas situações. Os jogadores me beijam na hora de baterem um pênalti, como se eu fosse retribuir o carinho cumprindo a direção que impulsionam na força dos pés. Os jogadores me abraçam, como se com isso me pedissem ajuda para alcançar a vitória. E eu sempre respondo com o silêncio.

Os jogadores também me chutam de raiva. É a hora em que estão entregues à tristeza muito própria da derrota. Dão uma bicuda em mim e eu voo para a arquibancada. Não querem saber de diálogo comigo. A agressão elimina toda forma de paz, negociação, diplomacia. Por isso, uma forma de reagir aos turbilhões da existência é a fuga para o desconhecido.

E eu não me limito ao campo de futebol. Minha forma redonda está no imaginário das pessoas em departamentos tão variados como o tempo, a astronomia, a arquitetura, a culinária, até mesmo no mercado financeiro. Meu desenho global se reproduz nos modelos de relógios, nos planetas do universo, na cúpula de monumentos, nas panelas das donas de casa, nas moedas.

Minha forma também se manifesta de todos os tamanhos: do átomo, a menor partícula da matéria, ao sol incandescente; do relógio de pulso à cama de dormir; do girassol à roda gigante; das rodas dos carros à melhor maneira de a cerveja descer pela garganta em dia de sol e calor.

Mas é no campo de futebol que eu sou mais eu. Deixo todo mundo tenso, em pânico, porque o destino do jogo está no jeito como eu me comporto em cada lance.

Rebelde, eu nem sempre sigo a vontade dos outros materializada nos pés que me chutam de um canto a outro. Sei que por força da minha capacidade de atração eu sou o coração de um mercado que movimenta milhões.

Mas eu não dou bola para isso, isso é coisa de prisioneiros do sistema financeiro e eu sou a liberdade em sua plena idealização. Consciente do meu papel, eu continuo a rolar no gramado e a provocar emoções, espanto, surpresas, zebras monumentais.

Eu sou a bola da vez.