UNISO CIÊNCIA

Vigilância e regras escolares servem para formar estudantes e professores submissos


Sob o discurso da necessidade de segurança e da prática da formação de alunos, o sistema educacional nas escolas brasileiras tem servido há anos para controlar a população escolar e formar alunos “dóceis”, ou seja, estudantes que se submetem às políticas de disciplinamento das unidades educacionais e da sociedade. Tais medidas se dão desde a forma como as escolas são construídas até pela instalação de câmeras em corredores e salas de aulas e catracas nas portas das escolas.

De certa forma, essas ferramentas de controle acabam atingindo os próprios professores dessas unidades, que se sentem pressionados e constantemente vigiados. Essa é a conclusão que a pedagoga Cláudia Martins Ribeiro Rennó chegou em sua pesquisa de mestrado “Produção de Corpos Dóceis: uma análise das práticas de disciplinamento e vigilância na escola”, realizada no Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade de Sorocaba (Uniso).

A análise bibliográfica, aliada à pesquisa de campo desenvolvida na pesquisa, mostra que esse controle sobre o corpo estudantil não é algo recente. Pelo contrário, é histórico e sempre existiu no ambiente educacional. Para chegar a essa conclusão, Rennó analisou a prática cotidiana de duas escolas - uma pública e outra particular. Nesses dois ambientes, entrevistou funcionários e usuários: uma ex-professora, duas diretoras, dois inspetores de alunos, duas mães e dois alunos. Ela também participou de uma reunião de Horário de Trabalho Pedagógico Coletivo, conhecido no meio escolar como HTPC, com um grupo de seis professores. Nessa ocasião, ela debateu as questões relacionadas à vigilância e ao disciplinamento.

Além da arquitetura dos prédios onde funcionam as escolas que, segundo a pesquisadora, propicia a vigilância e a ação disciplinadora por meio dos conceitos panóptico (visão de tudo) e sinóptico (olhar no instante), Rennó também cita como formas de controle a distribuição dos espaços em toda a escola, a interdição dos espaços e o controle do ir e vir. “Há escolas cujos locais internos são quase inacessíveis: não é permitido circular pelos corredores, entrar na sala dos professores e da diretoria, entrar na biblioteca sem identificação, permanecer em sala de aula no intervalo, passear pelos corredores sem necessidade. Há escolas que por medida de segurança e preservação do espaço físico, conservam a chave do banheiro com o bedel ou inspetor de alunos.” Na dissertação, ela fala também sobre a estrutura da sala de aula, o controle do tempo, as normas e valores relacionados à conduta e à atuação de inspetores e bedéis no ambiente escolar. “Percebe-se que o controle sobre o corpo é histórico, sempre existiu. Seja por motivos de ordem estética, científica, religiosa, econômica ou política. O que mudou foram os recursos de controle que se tornaram mais extensivos e diretos. Pela trajetória histórica, percebeu-se que os castigos foram abolidos enquanto forma e instrumento. Mas foram substituídos por outros mais sutis, de aparência muitas vezes inocente, quase diluídas no contexto, mas igualmente controladores do corpo em sua plenitude, como é o caso das câmeras que várias escolas disponibilizam hoje dentro das salas de aula, nos espaços de convivência, de pesquisa e de atividade burocrática.”

Rennó mostra em sua pesquisa que algumas dessas práticas continuam vigentes em algumas escolas, como o ato de colocar os alunos em fila e o uso de “livro negro”, como forma de disciplinar. “O processo de disciplinamento, operado amplamente pela escola, se dá através de mecanismos reguladores e múltiplos, os quais (o filósofo francês Michel) Foucault chamou de funções disciplinares: estratégias de utilização do tempo, do espaço, do saber e do corpo; e instrumentos disciplinares: a vigilância, a sanção normalizadora e o exame. Tais aspectos descritos têm como finalidade máxima fixar os sujeitos a um aparelho de normalização da sociedade”, defende a pesquisadora, que também se baseou nos estudos dos filósofos franceses Zygmund Bauman e Gilles Deleuze para chegar às suas conclusões.

PROFESSORES TAMBÉM SOFREM
A pesquisa desenvolvida por Rennó evidenciou que essas práticas também afetam a sociedade escolar e não somente os estudantes. “Depois do aluno, o professor é quem mais sofre esta intervenção. Tal aspecto se evidencia nas falas dos professores, cujos argumentos mostram um certo desconforto ao se sentirem pressionados e intimidados pela vigilância das câmeras e que, de certa forma, esse controle também se manifesta pelas atuações dos bedéis, cuja função se entende ao controle de entrada e saída de professores das salas de aula. Pode não ficar evidente, mas o foco é mais forte no professor, apesar de não ser este o intento do controle e disciplinamento.”

Rennó diz que no que toca às novas tecnologias, a sua quase onipresença traz inovações nas relações de poder. “Por serem quase desprovidas de materialidade, não necessitam de construções específicas, pois a virtualidade está caracteristicamente atrelada aos novos dispositivos presentes no interior de todos os espaços já existentes. Nas situações já exemplificadas, por exemplo, as câmeras instaladas em diversos lugares - até mesmo dentro das salas de aula, e a gravação de imagens, o cartão digital, a leitura digital, dentre outros, compõem o quadro destes novos mecanismos latentes de vigilância, o que pode ser denominado tecnologias de submissão, muitas vezes virtuais, os quais caracterizam as sociedades contemporâneas”.

BURLA E QUESTIONAMENTO
“Produção de Corpos Dóceis” também mostra que, apesar das várias formas de tentativa de sujeição dos indivíduos, a tentativa de burlar o sistema ainda existe nas escolas. E, segundo a pesquisadora, é “necessário instigar esse conflito entre disciplina/rebeldia, sujeição/transgressão, poder/resistência, que se manifesta no cotidiano escolar que, paradoxalmente, reproduz dispositivos de poder mediante o estabelecimento de normas, e o desenvolvimento de estratégias individuais ou coletivas de transgressão e resistência.”

Após reproduzir o discurso de pais e diretores que defendem as práticas de disciplinamento em nome da segurança dos alunos, Rennó questiona: “qual é o perigo manifesto dentro de uma sala de aula? Qual a necessidade de se ter todo um sistema como esse em ambientes menores como a biblioteca e a sala de aula? É controle ou vigilância?” E conclui: Parece não ser uma questão de prevenção educativa, mas um recurso para prevenir no aspecto da coesão: “Olhe, sorria, cuidado, você está sendo filmado…”

Fora do trabalho científico, mas tocando nos fones de ouvido da juventude, os versos iniciais da música Estudo Errado, do músico Gabriel o Pensador, só reforçam as palavras na conclusão da pesquisadora. Numa melodia marcada pela batida forte da bateria, com um videoclipe que mostra alunos em sala de aula respondendo a chamada de uma professora de aparência rígida, Gabriel começa sua música questionando: “Eu tô aqui pra quê? Será que é pra aprender? Ou será que é pra sentar, me acomodar e obedecer?”

Texto elaborado com base na dissertação “Produção de Corpos Dóceis: uma análise das práticas de disciplinamento e vigilância na escola”, do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade de Sorocaba (Uniso), elaborada sob orientação da professora doutora Vania Regina Boschetti e aprovada em 2009. Acesse a pesquisa: https://goo.gl/HHzVHS