Sofrimento na atualidade é tema de conferência
Helena Gozzano
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Novas maneiras de sofrer no Brasil do século XXI é o tema da conferência que marcará a criação do Núcleo de Estudos de Psicanálise de Sorocaba e Região (Neps-R), informa a psicanalista Delia Maria de Césaris, uma das organizadoras do evento e do núcleo. Será na próxima quinta, dia 12, às 19h, na sede da PUC em Sorocaba.
A conferência será apresentada pelo psicanalista Christian Dunker, professor titular do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP) e Analista Membro de Escola (A.M.E.) do Fórum do Campo Lacaniano, que concedeu entrevista ao caderno Ela a respeito do tema que falará em Sorocaba:
Sofrer é diferente em cada continente, país, lugar?
Sofrer é uma experiência compartilhada, sofremos com o outro, sofremos pelo outro. Ao contrário da dor, que pode ser mais ou menos constante no tempo e no espaço, variando, contudo, de pessoa para pessoa, o sofrimento depende de como ele é reconhecido ou desconhecido pelo outro. No século XVII a pessoa podia ter cinco ou dez filhos até que um vingasse, a experiência de perda de um filho, o mais difícil de todos os lutos, segundo Freud, era certamente diferente nesta época. Baseando-se nesta ideia de que a experiência de sofrimento muda conforme nós a reconhecemos, e, portanto, conforme a história na qual ela se inclui, vemos que há culturas que valorizam o silêncio e a expressão calculada e mínima do sofrimento, como os nórdicos e certos orientais, ao passo que outros fazem do sofrimento o centro de sua inserção social, considerando um grande ato de heroísmo contar as agruras pelas quais se passou, sendo isso não um sinal de fraqueza, mas de força por ter sobrevivido. O compartilhamento da experiência de sofrer varia também conforme a classe e posição social, isso porque há certas expectativas constituídas como alguém pode e deve manifestar seu sofrimento. Assim como a experiência de felicidade o sofrimento envolve sempre uma comparação com o sofrimento do outro. Por isso vemos certas famílias ou certos casais que parecem estar competindo para ver quem é a maior vítima da situação. Isso torna as narrativas pelas quais contamos, dividimos, organizamos nossas experiências de sofrimento, um forte elemento político.
A apologia à "felicidade" certamente traz muitas perdas, especialmente por conta do que deixamos de aprender com o sofrimento. Isso procede? Por que o ser humano foge tanto de sofrer?
Sim, desde os anos 1970 ocorreu uma gradual mudança em nossas expectativas do que o estado deve fazer por nosso sofrimento. Deixamos de esperar que ele nos guiasse rumo ao "bem estar social" e passamos a esperar que atue diminuindo o sofrimento. Isso tornou os agentes públicos algo assim como uma mistura entre médicos e terapeutas. Mas o sofrimento não é a doença e nem a soma de seus sintomas. Na verdade os sintomas se tornam mais ou menos relevantes, mais ou menos suportáveis, pelos menos os sintomas psíquicos, em função da legitimidade social da narrativa de sofrimento a partir dos quais são interpretados. Uma consequência importante desta mutação em nossa maneira de perceber o sofrimento é que somos incitados a perceber que todo sofrimento deve ser um sintoma, pois esta seria uma maneira de justificá-lo diante de instituições ou práticas de saúde que se encarregam de tratá-lo. Isso tem favorecido uma intensa e problemática medicalização de nossa cultura: crianças tomando Ritalina (MetilFenidado) desde muito cedo, o consumo de anti-depressivos chega a cifras espantosas e pouco plausíveis, o uso generalizado de ansiolíticos dispara, isso sem falar nas medicações usadas como doping para aumentar a performance no trabalho ou na escola. Nossa sensibilidade para o sofrimento aumento na medida inversa à redução de qualidade esperada em nossos parâmetros de felicidade. Cada vez mais a felicidade identifica-se com a fuga do desprazer, com a vida segura e tranquila (de preferência entre muros) em vez de se qualificar em ideias de aperfeiçoamento, individual ou coletivo.
Que sociedade estamos construindo com tantas mudanças acerca dos valores morais, princípios etc?
Eu diria sim que o sofrimento é uma experiência moral, ele não só organiza nossos juízos do que queremos evitar mas ele forma certos modelos de como queremos ser reconhecidos. Neste sentido ouvimos frequentemente que nossos valores estão se dissolvendo, que nós estamos em uma sociedade cada vez mais individualista (no sentido de egoísta) e orientada para o prazer. Como disse antes isso não me parece ser um bom diagnóstico; menos que buscar o prazer estamos nos acomodando com a fuga do desprazer; menos do que risco, queremos conforto. E o nosso individualismo parece cada vez mais um valor problemático, ainda que não declinante. Neste contexto o sofrimento é um parâmetro importante. Afinal o que são nossos valores senão aquilo pelo qual estamos dispostos a sofrer? Amor, liberdade, autonomia, seja lá quais forem nossos valores ditos fundamentais, eles são realmente postos à prova nas situações de sofrimento, que é, por assim dizer, a moeda pela qual pagamos pelos valores que queremos conquistar.
Que papel a mídia tem em todo esse quadro?
A mídia tem se transformado com a pluralização de meios. A mudança ainda é muito nova, daí a tensão de resolver a complexidade da paisagem de opiniões, e de confrontações, pela redução a certas divisões organizativas. Em situações muito complexas tendemos a olhar para o conjunto e fazer perguntas simplificadoras, do tipo: de que lado eu estou? A mídia tem um papel fundamental não só na captação e interpretação do mal-estar, tanto pela efetiva articulação que este encontra com certos sintomas, chamados de sintomas sociais, como pela oferta de narrativas que leem este mal-estar em temos de uma história. A integração entre mídias impressa e digital tem tornado urgente a complexidade das formas de apresentação dos fatos. Isso vai tornar nossa inteligência midiática, provavelmente muito mais exigente.
A psicanálise tem se aproximado mais da sociedade? Quando ela será mais acessível em consultórios?
Nitidamente a psicanálise está mais próxima e mais diversificava em seu contato com a sociedade. Isso se deve a vários fatores, desde que as contradições sociais estão mais sensíveis para os psicanalistas, mas também porque os psicanalistas têm se colocado cada vez mais nos hospitais, nas escolas, no sistema judiciário e nas instituições em geral, inclusive na mídia. A postura "olímpica" que olhava para os assuntos terrenos com indiferença deixou de ser predominante e hoje temos uma ampla discussão, mas aí não só Brasil, sobre as relações entre psicanálise e política. Outro fenômeno curioso é o que se passa nos consultórios. Quando comecei a clinicar, há 20 anos atrás, previa-se que os psicólogos seriam engolidos pela vaga dos convênios de saúde de tal forma que teríamos que nos adaptar ou então seríamos excluídos da demanda mais comum. Ocorreu que enquanto a medicina e a psicoterapia breve foi completamente dominada pelos convênios e sua forma implícita de praticar saúde, os psicanalistas ficaram excluídos, porque não cabiam no modelo 10 ou 15 sessões por ano. Ora, com o passar do tempo aquilo que era uma exclusão que nos condenaria à extinção tornou-se um modelo de sobrevivência muito bem sucedido. Nossa formação é longa e dispendiosa, mas isso acabou convergindo com os novos tempos nos quais a passagem do período de estudos para o ingresso no trabalho tornou-se mais lenta e gradual. Ou seja, de repente nosso anacronismo artesanal tornou-se uma forma avançada de qualificação capaz de resistir, razoavelmente, aos novos tempos de capitalismo brasilianizado. Houve uma redução do patamar de ganhos, uma flexibilização do enquadre, uma abertura para novas formas de demanda, que eu chamo de nova maneira de sofrer no Brasil pós-inflacionário. De tal forma que hoje a maior parte dos psicanalistas, notadamente os que ainda têm espaço para receber novos pacientes, cobra honorários acessíveis e oferece um serviço de qualidade. Isso também acontece em certos setores de excelência na saúde pública. Ao passo que aqueles que entraram da saúde administrada estão cada vez mais oprimidos pela expansão do modelo de "gestão" nos serviços em saúde.
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