Trancar não é tratar
Adriana Caldeira de Oliveira
A Reforma Psiquiátrica Brasileira iniciou-se nos anos de 1970 e ainda está em curso, surge no bojo da redemocratização no país, recusando frontalmente os hospitais psiquiátricos como locais de cuidado e produção em saúde.
Suas bases estão pautadas nas propostas de cuidado em liberdade, centradas na defesa e garantia de direitos humanos, partiram de profissionais médicos, enfermeiros, técnicos de enfermagem, psicólogos, terapeutas ocupacionais, assistentes sociais, e tantos outros -, que produziram e seguem produzindo, numa aliança ético-política com pessoas em suas experiências de sofrimento psíquico e com suas famílias, novos modos de cuidado nos contextos reais de vida, promotores de saúde e de justiça social. Inspirados inicialmente no que se propôs como Psiquiatria Democrática.
Foi a partir da década de 90 que muitas estratégias se consolidaram para a transformação do estatuto jurídico-social da loucura, reconhecendo a cidadania das pessoas que sofrem com transtornos mentais, bem como para a construção de novas modalidades de suporte e cuidado que abarquem as dimensões biopsicossociais.
Todas as conquistas desse processo ainda em curso foram marcadas por muitas tensões e disputas, atravessadas por distintos interesses, valendo ressaltar que sempre sem recuar em termos dos direitos garantidos e do norte ético jurídico-político-assistencial, expresso em Convenções Internacionais das quais o Brasil é signatário e nos marcos legais nacionais. A reforma psiquiátrica brasileira, nesse sentido, tem a marca de uma política de Estado que atravessou diferentes governos e gestões, sustentada pela continuidade de respeito as conquistas já realizadas.
A segregação e violação de direitos de pessoas com transtornos mentais segue como realidade ainda não superada, seja em hospitais psiquiátricos, seja em comunidades terapêuticas. São fartas e constantes as denúncias públicas de violência e maus tratos nestes espaços. Havendo ainda negligência das gestões municipais, estaduais e nacional acerca das instituições ainda em funcionamento, apontadas para descredenciamento do SUS a partir de vistorias e auditorias.
A escassa oferta de tratamento em saúde mental no Brasil, inicialmente restrita a vagas em instituições segregadoras e poucas ações ambulatoriais, foi sendo substituída pela implantação de uma rede diversificada de serviços que inclui atenção psicossocial pelas equipes de saúde da família com apoio de diferentes profissionais dos 7.240 Núcleos de Apoio à Saúde da Família; 111 Equipes de Consultório na Rua (destinada ao atendimento da população em situação de rua); 2.209 Centros de Atenção Psicossocial (em diferentes modalidades); 34 Unidades de Acolhimento; 888 leitos em hospitais gerais; 610 Serviços Residenciais Terapêuticos, e1008 iniciativas de geração de trabalho e renda na lógica da economia solidária (inclusão social pelo trabalho).
Precisamos garantir a ampliação a Rede de Atenção Psicossocial em âmbito nacional e deixarmos claro o compromisso com o SUS e com o legítimo processo de Reforma Psiquiátrica em curso neste país há mais de 30 anos. Um processo que vem demonstrando competente e corajosamente que a equidade é vital para a implementação de um sistema universal de saúde e para a democracia. Trancar não é tratar, e repito que a implantação de políticas públicas sem base em evidências e valores democráticos e garantidores de direitos humanos, acaba por promover violação de direitos.
Adriana Caldeira de Oliveira é professora adjunta do Departamento de Ciências Humanas (DCHE), do Centro de Ciências Humanas e Biológicas (CCHB), da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar)- campus Sorocaba