"Manhattan": para ver e rever
PorLúcia Helena de Camargo
Woody Allen tem no currículo algo além de quatro dezenas de filmes, contando trabalhos de atuação, direção e roteiro. Todo ano ele lança um novo. Mas há sempre aquela obra mais emblemática na carreira de um artista. Nova-iorquino apaixonado pela cidade, ambientou em Nova York grande parte de seus filmes. Só que somente esse tem a ilha de Manhattan, o coração da metrópole, já no título. E nenhum outro é tão enfático nos elogios, do discurso inicial que ensaia uma declaração de amor ao foco nos pontos negativos, que só fazem ressaltar os positivos. Como quando você diz que se apaixonou por sua namorada porque ela tem aquele dentinho torto adorável, ele exibe pontes, avenidas e belíssimos recônditos do Central Park em meio ao movimento de táxis e sinais de trânsito e lixo nas ruas. Amar a perfeição é enfadonho. Assim, ele professa o amor pelo imperfeito.
Tudo filmado em preto e branco, com acento deliberadamente exagerado nas luzes e sombras para destacar contornos e linhas. A cena dentro do planetário usa e abusa dos lusco-fuscos e contrastes.
No ano que vem, em 25 de abril, "Manhattan" completará 40 anos de idade. Teremos celebrações. Mas neste ano que antecede o aniversário de números redondos, o Cinemark decidiu exibir o clássico. Foi uma delícia poder assisti-lo na tela grande. Mas se você conseguir o filme em uma boa cópia em DVD ou blu-ray, pode aproveitar assim mesmo. É um filme para ver e rever.
A história perpassa os temas que jamais deixaram Allen: relacionamentos, encontros e desencontros entre homens e mulheres, mulheres e mulheres etc; neuroses; sexo e a falta dele; mais neuroses; traições conjugais e, bem, o amor de um homem mais velho por uma moça bem mais jovem. Está tudo ali. Ele próprio encarna Isaac Davis, um roteirista de TV neurótico de 42 anos de idade que começa a namorar Tracy (Mariel Hemingway), garota de 17 anos, depois de ser abandonado pela terceira esposa, Jill Davis (ninguém menos do que Meryl Streep), que decidiu se casar com outra mulher.
Mary Wilkie (Diane Keaton, que em 1977 levara o Oscar de melhor atriz por "Noivo Neurótico, Noiva Nervosa") é a mulher que surge para desestabilizar. Amante do amigo Yale (Michel Murphy), é "cerebral demais". E conquista Isaac. Então, nada será simples, com triângulos e quadrados amorosos se formando. Mary fala sem parar, vê tudo, percebe tudo, é sempre a mais esperta pessoa na sala. E por isso fica entediada.
O filme é recheado de boas piadas, engraçado de verdade. Os diálogos são muito inspirados e rápidos, no estilo tudo ao mesmo tempo agora. O assunto da conversa pode mudar de ataques nazistas para orgasmos em um piscar de olhos. Há uma participação brevíssima de Mia Farrow no momento dessa conversa surreal. "Eu finalmente tive um orgasmo, mas meu médico disse que era do tipo errado", diz a moça.
O monólogo no qual Isaac elenca quais são as coisas que valem a pena na vida é impagável. O segundo movimento da sinfonia "Júpiter" (Nº 41), de Mozart, "Potato Head Blues", de Louis Armstrong e George Gershwin, cuja "Rhapsody in Blue" é parte do longa. Não vou contar mais. Quem viu, reveja para lembrar. E depois me conte se não é genial. Quem não viu, vai se deliciar pela primeira vez.
"Manhattan" ganhou diversos prêmios: o inglês Bafta de melhor filme e roteiro, o francês Cesar, além de uma dúzia de premiações americanas e duas indicações ao Oscar.
Não acredito que seja o melhor Woody Allen de todos os tempos, mas está entre os melhores. Da fase recente, acho maravilhoso "Meia Noite em Paris" (Midnight in Paris, 2011). Entre os filmes antigos, meus preferidos são "Sonhos de um Sedutor" (Play it Again, Sam, 1972) e "Zelig" (1983). Mas com a possível exceção de "Interiores" (1978), gosto de todos os filmes feitos por ele. É consenso entre os fãs do cineasta que mesmo um Woody Allen mediano é melhor do que 90% dos filmes em cartaz em qualquer época, em qualquer lugar.
Lúcia Helena de Camargo é jornalista, cinéfila e escreve também sobre comida, no blogwww.menudalu.com.br
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