OUTRO OLHAR

Uma taça de saudade


Carlos Araújo
carlos.araú[email protected]


 - ARTE: LUCAS ARAÚJO - ARTE: LUCAS ARAÚJO

O dicionário traduz a palavra saudade com uma descrição que vai ao ponto: "Sentimento melancólico devido ao afastamento de uma pessoa, uma coisa ou um lugar, ou à ausência de experiências prazerosas já vividas."

Todos sentem, sabem o que é e são capazes de identificar a saudade quando ela bate forte, mas nem todos sabem o que fazer para lidar com esse fenômeno da natureza humana. Uns fazem música, como o compositor Peninha. Ele escreveu e cantou que "ter saudade até que é bom / é melhor que caminhar vazio".

Saudade é problema que vai muito além das nossas limitações e é por isso que ela provoca sensação de dor física. Dar conta desse sentimento é quase sempre impossível. Sua dimensão é uma mistura de signos concretos e abstratos, o que dificulta toda ideia de domínio e superação nesse labirinto da memória.

Sem dúvida, a saudade abre um vasto universo que tem tudo a ver com tempo, espaço, lugares, afetos, perdas. É elemento central em desencontros, viagens, guerras. Está presente nas estradas, nas linhas aéreas, no balanço das ondas do mar. Surge nos sentidos: um ruído lembra alguém, um lugar resgata acontecimentos passados, uma silhueta provoca arrepios. Cheiros, gostos, sons, tudo é capaz de levantar a poeira de coisas e criaturas esquecidas.

Saudade pode ser remediada ou não. Pode ser sentida numa fotografia, num vídeo familiar, numa canção antiga. Pode ganhar o formato de num cartão com dedicatória recebido há muitos anos. O papel amarelecido resiste ao desgaste do fundo das gavetas.

E há a saudade que pode ser resolvida, como a de alguém que vai retornar de uma longa viagem, e a saudade que jamais se dissolve e se torna infinita, como a de alguém que morreu e só deixou um milhão de lembranças.

Por tantos descaminhos, a saudade é tema de obras de arte. "Acho bom eu até combinar / Encontro com a saudade de você", canta Billy Blanco numa de suas canções mais tocantes. E João Gilberto, o gênio da Bossa Nova, não deixa por menos: "Chega de saudade, a realidade é que sem ela / Não há paz, não há beleza, é só tristeza."

Se toda saudade é igual, cada um tem a saudade que consegue carregar para toda a vida. E ela se manifesta com intensidade diferente em cada coração. Isso acontece porque ela pode ser universal, mas variados são os tipos de sensibilidade.

Há quem chore diante de uma recordação ou de uma coisa, concreta ou imaterial, que evoque emoções vividas. Mas também há quem fique indiferente a elas. Enquanto uns são atentos à poesia do amanhecer e do pôr do sol, outros não estão nem aí e há os que se ocupam apenas dos elementos práticos da existência.

Um dia um jovem entregou à namorada uma flor artificial, vermelha e divina como rosa colombiana, e disse que gostaria que ela durasse tempo suficiente para que a garota não o esquecesse jamais. O tempo passou e o cara se foi para lugares ignorados. Só restou a rosa, guardada como recordação numa gaveta do guarda-roupa, entre peças do vestuário que a moça não usa mais.

Um certo pai brincava com o filho numa praça do bairro onde morava. Jogavam bola, corriam, deslizavam no escorregador do barranco de terra em declive. O menino sorria, feliz, como numa representação do infinito. Mas tudo acabou numa segunda-feira de agosto em que o filho morreu. Agora, quando revisita a praça, o pai tem a sensação de ouvir a voz do garoto e a memória reconstitui aquelas brincadeiras como num filme imaginário. É o seu momento de saudade.

A saudade também tem o seu lado histórico, social, filosófico.

Nesses tempos de medo e intolerância, muita gente procura alento para o desencanto curtindo a saudade de épocas notáveis pelas esperanças que depois foram perdidas e jamais recuperadas.

Saudade de Maio de 68, da Tropicália, do Cinema Novo.

Saudade de quanto éramos jovens, audaciosos, criativos; de quando acreditávamos nas utopias; da nossa indignação contra as injustiças; da inocência que nos levava a sonhar com o amor; das noites regadas a poesia e música em botecos escurecidos.

Saudade do tempo em que éramos tudo o que não somos agora.