ARTIGOS

Tragédia silenciosa


Alexander Vicente Christianini

"Governar é abrir estradas" Washington Luís (1869-1957)

Seja no sentido figurado ou prático, esta frase dominou o imaginário político no Brasil por muitos anos. Em várias regiões do País, como na Amazônia legal, ela ainda tem forte peso nas plataformas eleitorais. Em 1948, a única estrada asfaltada do Brasil ligava a capital do País, no Rio de Janeiro, a Juiz de Fora, em MG. Privilegiamos o transporte rodoviário desde então e hoje o Brasil tem a quarta maior malha rodoviária do mundo, com 1.610.076 km de estradas, embora a maior parte ainda não pavimentada. Este salto foi acompanhado pelo número de veículos. Em 1970 a população brasileira era de 90 milhões de pessoas e a frota nacional pouco menor que 2,5 milhões: mais de 30 pessoas para cada veículo. Hoje somos 208 milhões de brasileiros para mais de 45 milhões de veículos. A população inteira já cabe em nossos carros. Estradas facilitam o transporte de pessoas, produtos, conectam e salvam vidas. Mas também têm custos de implantação, manutenção, ambientais e de saúde. Infelizmente milhares de pessoas perdem a vida em acidentes automobilísticos a cada ano, muitas em decorrência da imprudência ao dirigir e da má conservação de veículos. Um aspecto ainda pouco abordado no Brasil diz respeito ao custo ambiental das estradas. Vou me ater a apenas um deles.

Durante a implantação, uma estrada pode dividir não apenas propriedades, mas também cortar áreas naturais como cerrados e florestas. Ambientes por onde antes os animais silvestres podiam vagar livremente agora estão separados pela estrada. Para andar de uma área até outra os bichos precisam atravessar a pista. E ai surge um dos problemas. Muitos animais acabam morrendo atropelados em colisões com veículos. As estimativas para o Brasil variam muito, mas todas são na casa de milhões por ano. Sim, milhões.

Tenho prestado atenção nos animais atropelados ao ir para o trabalho na UFSCar. Somente nos cerca de oito quilômetros da rodovia João Leme dos Santos, que liga Sorocaba até Salto de Pirapora, já registrei em pouco mais de um ano atropelamentos dos seguintes bichos silvestres (alguns mais de uma vez): ouriço-cacheiro, cachorro do mato, furão, seriema, anu-branco, coruja suindara, coruja caburé, pica-pau-do-campo, maritaca araguari, andorinha, asa-branca, pomba-amargosa, urubu, carcará, sapo cururu, além de lebrão e um incontável número de cães e gatos domésticos sujeitos a possível posse irresponsável de seus donos ou até mesmo atraídos para a estrada pelos próprios animais atropelados. Talvez muitos dos motoristas nem se dão conta desta tragédia silenciosa ao transitarem pela rodovia.

No caso dos mamíferos a maior parte acaba sendo atropelada de noite. Qualquer pessoa que já cruzou a pé uma rodovia movimentada de noite em um local escuro sabe o quão amedrontador esta simples atividade pode ser. É fácil o pedestre perder a noção da distância dos veículos e ficar cegado pelos faróis. O mesmo ocorre com animais noturnos que ainda são mais suscetíveis à cegueira momentânea dos faróis em razão de seu aparelho ocular, mais adaptado para amplificar a pouca luz disponível de noite. No caso das aves, cargas de grãos que caem durante o transporte podem acabar atraindo-as para a beira das estradas, aumentando o risco de atropelamentos. Reduzir esta mortandade inútil é possível. Vai desde considerar este risco no planejamento do traçado da rodovia, a instalação de sonorizadores ou redutores de velocidade nos locais sujeitos a maior taxa de atropelamentos, implantar passagens de fauna aéreas ou subterrâneas para que os animais cruzem a rodovia em segurança, acomodar cargas adequadamente, educar ambientalmente os motoristas. Dirigir com atenção e dentro dos limites de velocidade também pode ajudar a reduzir tantas mortes desnecessárias.

Alexander Vicente Christianini é professor do Departamento de Ciências Ambientais da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), campus Sorocaba - [email protected]