Prato criado para impressionar as mulheres, a paella é receita familiar perfeita para homenagear as mães no dia delas
Por MARCO MERGUIZZO
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Receita espanhola típica da região de Valência, onde ela é feita há séculos pelos homens para testar seus dotes culinários e impressionar as mulheres, a paella tem uma história saborosíssima e é um pretexto mais do que perfeito para você prepará-la em casa neste domingo, dia 13, em que se comemora o Dia das Mães.
Além de homenagear a sua, que o verá colocando a mão na massa e o avental de cozinheiro por um dia, a preparação costuma agradar a gregos e troianos por ser um prato farto, opulento e riquíssimo de ingredientes e sabores. Ou seja: é possível reunir os familiares para degustá-lo, bem como envolvê-los nas tarefas de preparo e, no final, na hora de lavar a louça, deixar a mamãe descansando merecidamente no sofá, no papel de simples espectadora, pois ela merece. De quebra, também foge-se das filas e dos preços turbinados nessa data pelos restaurantes.
De longe a especialidade ibérica mais conhecida internacionalmente, a receita teria surgido na região de Valência, junto ao Mediterrâneo, como alimento rural, entre os séculos XV e XVI. Os camponeses saíam de manhã para o trabalho, levando um pouco de arroz, óleo de oliva e sal, além da paellera - uma panela rasa e de grande diâmetro, que lembra a frigideira e teria origem na antiga patella dos romanos. Cozinhavam tudo ao ar livre no fogão de lenha e, portanto, longe da cozinha, território tradicionalmente feminino.
O resultado? Uma alquimia comunitária irresistivelmente perfumada, colorida e instigante feita com carinho e de maneira especial "por eles para elas". Ou, em bom castelhano, "por ellos pa'ellas" - daí a origem do seu nome. (Em tempo: nos primórdios, usava-se a madeira de laranjais, daí o seu aroma incomparável).
Na Espanha, a paella é preparada tradicionalmente pelo homem - e só excepcionalmente pela mulher. A origem dessa tradição remonta à Espanha medieval, época em que os chefes de família retornavam de suas empreitadas ao final de um dia, ou por vezes semanas, com o fruto da caça e da pesca e legumes da estação. Às carnes abatidas e fisgadas - lebre, pato e, depois, a então rara e nobre galinha - se incorporava o arroz, o azeite e o sal.
Embora tais ingredientes costumem brilhar e roubar a cena nos dias de hoje, é o arroz o verdadeiro protagonista e o componente indispensável deste prato emblemático da culinária espanhola mais tradicional. Herança gastronômica deixada pelo longo período de dominação árabe no país, o cereal é objeto de verdadeira devoção do povo espanhol, que inventou em cada região incontáveis maneiras de prepará-lo.
Registros históricos dão conta que o arroz desembarcou na Península Ibérica por volta do século VI, pelas mãos dos bizantinos. Seu cultivo e consumo mais intensivos e sua consequente popularização, porém, só se consolidou dois séculos depois, com os árabes.
A primeira grande plantação de arroz, na Espanha, surgiu nas proximidades da cidade de Valência, numa lagoa de água doce chamada La Albufera - "Pequeno mar", em árabe -, que tem vários pontos de contato com o Mediterrâneo, e é cercada por terras baixas e pantanosas, ideais para o seu cultivo.
Mais tarde, se espalhou rumo a outras áreas costeiras e o interior, especialmente o delta do rio Ebro e a cidade de Múrcia.
Curiosamente, os espanhóis, nos seus primeiros contatos com o grão, o preferiam na sobremesa. Datado de 1325, o Arroz com Leite, temperado com açúcar e canela (variação do nosso Arroz Doce, que, por sua vez, é uma herança dos colonizadores portugueses) é uma das receitas ibéricas mais antigas de que se tem registro.
Além de mais barato que outros cereais, o arroz, entre outras vantagens culinárias, absorve o sabor e os aromas dos ingredientes que o escoltam numa receita. Na paella, ao ser cozido, cada grão funciona como uma pequena esponja em contato com as diferentes carnes, peixes, vegetais e frutos do mar. Quando há talento e sensibilidade nas mãos de quem cozinha, o resultado, claro, é ainda melhor.
O RITUAL E OS SEGREDOS DA AUTÊNTICA PAELLA ESPANHOLA
Em Valência, em especial, a terra natal da paella, o ritual de preparação é ainda mais rigoroso. Despreza-se o fogão a gás. A paella valenciana tradicional é feita sempre em fogão de lenha. Nesse aspecto, em especial, lembra o nosso churrasco - também uma elaboração comunitária de fim de semana com contornos festivos.
Em ambos os casos, o fogo aceso ao ar livre tem um atavismo subliminarmente masculino. Seu preparo, de feitura trabalhosa, constitui, portanto, um privilégio dos homens que, em ocasiões ou datas especiais, desejam testar seus dotes culinários e, assim, impressionar "sus mujeres".
Muitos estudiosos da culinária ibérica acreditam que o alto grau de dificuldade em fazer a paella ajuda muito a explicar a razão de o homem espanhol, conhecido por ser tão cioso de sua virilidade, sentir-se atraído pelo desafio em elaborá-la. Seja como for, depois de ganhar fama em Valência, a paella alcançou o litoral, onde passou a ser feita com frutos do mar.
Ali, recebeu o nome de paella marinera. O processo de migração e aculturação do prato também deu origem à paella negra (que incorporou a lula e a sua tinta escura característica - daí seu nome de batismo). Desse modo, a receita foi ganhando outras regiões do país e inúmeras versões. Hoje, elas somam mais de 1.000 em toda a Espanha, relatam algumas enciclopédias gastronômicas.
Por tratar-se de um prato de execução complexa, a começar pelo ponto extremamente delicado de cada ingrediente até a irresistível plasticidade de sua apresentação, seu preparo exige uma série de procedimentos, incluindo alguns macetes na hora de elaborá-lo.
O arroz, por exemplo, ao contrário do risoto italiano, deve ficar seco e solto. Para isso, ele nunca deve ser lavado e sequer mexido durante o cozimento, para formar na panela o socarrat, aquele delicioso queimadinho que gruda no fundo da panela. As carnes, por sua vez, também devem ser bem refogadas, para que formem o tal fundo. Já a água precisa cozinhar no mínimo por 25 minutos, a fim de incorporar o sabor dos ingredientes.
A tradição manda, ainda, que seus felizardos apreciadores sentem-se em volta da paellera e sirvam-se diretamente dela (esse modo comunitário de comer provém muito provavelmente dos árabes). A paella, portanto, é dividida em tantas partes quantas forem as pessoas presentes à mesa. E cada uma delas vai se servindo apenas do delicioso território que lhe coube, ou pôde escolher.
PAELLERA: ORIGEM DIVINA
Até onde se sabe, o nome da paellera (utensílio que lembra a frigideira) vem de patella, usada na Roma antiga para as oferendas aos deuses nos rituais de fecundação da terra. Outros sustentam que a palavra latina ainda tem relação com a deusa Patelena, invocada para proteger plantações. Enfim, há grande semelhança entre a patella dos romanos e a paella dos espanhóis, no formato e nas dimensões, assim como se parecem os ingredientes básicos dos rituais: a lenha, o fogo, o comando masculino da cerimônia realizada ao ar livre.
No século XVI, o utensílio já era chamado, em valenciano, de paella. E importante: a pronúncia correta é algo próximo de "pa-ê-ia", jamais "paeja", como os argentinos e uruguaios costumam pronunciá-la, para horror dos espanhóis de origem.
RECEITA
PAELLA MISTA
(6 a 8 porções)
INGREDIENTES
1 kg de arroz, sem lavar. 2 litros de água (em geral, o dobro de arroz em litros). 250 g de lulas limpas. 200 g de mariscos com casca. 200 ml de azeite de olivas. 500 g de camarões grandes, com casca. 400 g de frango cortado em pedaços médios. 100 g de vagem-macarrão, sem as pontas e cortadas ao meio. 2 tomates maduros picados. 1 colher (sopa) de páprica doce. 2 dentes de alho e 2 ramos de salsinha picados e misturados com óleo de oliva. 250 g de camarões pequenos, descascados. 1 envelope de corante alimentar. 3 a 4 pistilos de açafrão espanhol. 2 pimentões (um vermelho e outro verde), assados sem pele e sementes, cortados em tiras. Sal a gosto. (*) Reserve alguns camarões grandes, mariscos e pimentões para decorar.
PREPARO
1) Corte as lulas em rodelas e reserve. 2) Reserve também os tentáculos. 3) Lave muito bem os mariscos. 4) Numa paellera, aqueça o óleo de oliva, junte os camarões-rosa, polvilhados com sal, e deixe dourar. 5) Retire-os e reserve-os para a decoração. 6) A seguir, junte, em fogo médio, o frango já temperado com sal e refogue até dourar. 7) Acrescente a vagem, o tomate, a páprica e o óleo com a salsinha e o alho. Misture e adicione as lulas e os camarões pequenos. 8) Refogue por 10 minutos, incorpore a água, corrija o sal e deixe cozinhar por 20 minutos, em fogo alto, a partir do momento da ebulição. 11) Baixe o fogo para médio, acrescente o corante e o açafrão. 12) Misture e, depois, junte o arroz, espalhando-o em formato de cruz, sem mexer.13) Coloque os pimentões e os mariscos, reservando alguns para a decoração. 14) Conserve no fogo até o arroz ficar cozido. 15) Deixe a paella descansar por 5 minutos, fora do fogo. 16) A seguir, decore-a com os pescados e sirva imediatamente.
DICAS DE HARMONIZAÇÕES
Se não optar pela sangria, que é uma preparação democrática e que em geral agrada a todos, escolha um bom vinho para harmonizar com o prato. No caso da paella só de frutos do mar, sugiro um vinho branco encorpado. De preferência um espanhol elaborado com as uvas Albariño, Garnacha Branca ou Macabeo. Ou, se preferir, varietais das cepas francesas Sauvignon Blanc e Riesling.
Já para casar com a paella mista (ou valenciana) são indicações certeiras um tinto também de sotaque espanhol, jovem, leve, fresco e sem madeira, e que pode ser das castas ibéricas Monastrel, Tempranillo ou Garnacha. Ou mesmo um Pinot Noir ou Merlot de paladar elegante do Velho ou mesmo do Novo Mundo.
Para ambas as versões da receita são bons curingas pela versatilidade e acidez que apresentam na taça os cavas (espumantes espanhóis) ou mesmo um bom rosé borbulhante brasileiro que costuma fazer bonito à mesa. Abaixo algumas sugestões de rótulos de boa relação preço-prazer selecionados por este blogueiro.
Um feliz almoço de Dia das Mães!
Entre os brancos espanhóis, Barranc del Closos Blanc 2011 (Priorato; R$99), Taus branco 2014 (Jumilla; R$ 56,88) e Oda Blanc 2013 (Coster del Sere; R$ 99).
Em matéria de tintos da Espanha: Infiltrado 2013 (Jumilla; R$ 134), July 7 2015 (Vino de La Tierra, Bodegas Patrocinio; R$39) e Colors 2009 (Costers del Segre; R$ 71,40). Já entre os espumantes: Cava Idilicum Brut (Utiel-Requena; R$79). Em tempo: os todos os vinhos citados são importados com exclusividade pela Vinissimo de São Paulo (www.vinissimo.com.br).
No capítulo de espumantes rosés nacionais do tipo brut (mais seco) são excelentes os exemplares produzidos pela Cave Geisse (R$ 97,90), Dal Pizzol (R$74) e Aurora (R$ 54,90), todos provenientes do município de Pinto Bandeira, na Serra Gaúcha.
(*) Marco Merguizzo é jornalista profissional especializado em gastronomia, vinhos, turismo e estilo de vida. Confira outras novidades no Instagram (@blog 1gole1garfada1viagem) ou clique aqui e vá direto para a página do blog no Facebook