OUTRO OLHAR

Passagem de ida para Moscou


Carlos Araújo
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 - ARTE: LUCAS ARAÚJO - ARTE: LUCAS ARAÚJO


Nesses tempos que antecedem a Copa do Mundo de Futebol, os olhos do mundo se voltam para a Rússia. Desdobram-se em programas de televisão, documentários, conteúdos na internet, agências de viagem e álbuns de figurinhas, todos focados na pátria de Vladimir Putin. São oportunidades de ouro para ter contato com uma das potências mais influentes do mundo, ainda que à distância.

Entre todos esses meios, nenhum é mais intenso e profundo do que a estrada aberta pela chamada "grande literatura russa". Ler histórias é um dos caminhos mais prazerosos para entrar na alma de um povo. E a alma russa pode ser conhecida não somente numa viagem a Moscou. Pode também ser captada nas páginas de contos e romances. As obras literárias mostram que há mais coisas em comum entre russos e brasileiros do que se pode imaginar.

Leão Tolstói, o autor de "Guerra e paz", recomendou certa vez que o escritor deve pintar o lugar onde vive se quiser ser universal. Ele próprio seguiu esse princípio. Toda a sua obra traça um vasto panorama da Rússia, com suas belezas e tragédias.

Outro gênio russo, Fiódor Dostoiévski, cumpre o mesmo destino na arte de contar histórias. Os dois abriram trilhas também percorridas por brasileiros como Machado de Assis, Euclides da Cunha, Graciliano Ramos, Jorge Amado, João Guimarães Rosa, autores de livros que traduzem a alma brasileira.

A oportunidade de contato com a Rússia pela via literária vai muito além de Tolstói e Dostoiéviski. A literatura russa gerou uma vasta galeria de autores que vão de Alexandre Púchkin a Nicolau Gógol, de Ivan Turgueniev a Anton Tchekhov, de Máximo Górki a Bóris Pastenak, de Joseph Brodsky a Alexandre Soljenítsin, de Leonid Andrêiev a Isaac Babel.

Para quem conhece os autores russos, há pouco o que dizer. Mas quem não os conhece e tem interesse em mergulhar na cultura russa, as obras desses escritores são como passagens de ida para Moscou. Com direito a emoções garantidas. O risco é encontrar abrigo em algum lugar às margens do rio Volga e não querer retornar.

Pode-se começar pelos grandes romances de Tolstói e Dostoiévski. Outras alternativas são os contos. Diferente do Brasil, que desvaloriza esse gênero injustamente, na Rússia o conto é altamente celebrado como obra de arte. E produziu autores tão importantes como os maiores mestres da história curta, de Poe a Maupassant.

No Brasil, a Editora 34 preencheu uma lacuna com a publicação, em 2011, da "Nova antologia do conto russo". O livro teve reedições em 2012 e 2016 e com sorte ainda pode ser encontrado nas livrarias. A internet também traz publicações de contos como a obra-prima "A árvore de Natal na casa do Cristo", de Dostoiéviski, uma das histórias mais comoventes de toda a literatura.

Desde a década de 1940, algumas antologias do conto russo foram publicadas no Brasil. A antologia da Editora 34, além da marca da qualidade, abrange produções que vão de 1792 a 1998. O vasto período de cobertura mostra que a tradição de excelência da literatura russa não morreu na era soviética. Está presente em autores tão inéditos para os brasileiros como Saltikov-Chedrin, Varlam Chalámov e Tatiana Tolstaia.

Um dia, há mais de 30 nos, eu li "Quatro dias", de Vsiévolod Gárshin, um conto magistral que descreve os últimos momentos de um soldado ferido em combate. Esse conto faz parte da antologia da Editora 34.

"O sinal", outro conto de Gárshin, está fora da publicação. A narrativa conta a história de um homem que, para forçar a parada de um trem e evitar um desastre com muitas vítimas, rende-se ao sacrifício de cortar a própria pele e usa a camisa vermelha de sangue para sinalizar um perigo à frente.

Essas "viagens" à Rússia profunda, em meio ao turbilhão de emoções a cada página virada, fazem do conjunto dessas obras uma experiência de vida a ser compartilhada.