1 gole, 1 garfada, 1 viagem

Longe do celular e outras bolhas sociais, os primeiros cafés eram um convite ao diálogo e ao convívio social regado a um bom cafezinho


POR MARCO MERGUIZZO (*)

(*) Siga também no Instagram o conteúdo exclusivo do @blog1gole1garfada1viagem

Não resisti. Cafemaníaco apaixonado e inspirado também pela excelente reportagem de hoje de o Cruzeiro do Sul, da repórter Larissa Pessoa (para ler a matéria, clique aqumas volte para terminar a leitura deste post, ok?) sobre esta quinta-feira, 24/5, em que se comemora o Dia Nacional do Café, volto ao tema após ter publicado duas postagens sobre cafés especiais há pouco mais de um mês (se você ainda não leu, confira agora, clicando aqui e aqui).

Mercado em plena expansão em todo o mundo, os cafés ou cafeterias oferecem nos dias de hoje, para deleite dos consumidores e apreciadores de um bom pretinho, um sofisticado menu de grãos premium provenientes dos mais diversos e remotos terroirs do planeta. Uma matéria-prima preciosa que é operada com extrema técnica por baristas profissionais que extraem o máximo de qualidade dos melhores lotes. 

O hábito de se apreciar socialmente a infusão em cafeterias, porém, vem de longe. Mais precisamente da região que é considerada a responsável pela difusão da bebida logo nos seus primórdios.
 
Embora a planta seja originária da Etiópia, país situado no chamado "chifre" da África, na região nordeste do continente negro, onde ainda hoje faz parte da vegetação natural, o nome café que a batiza não é proveniente da Kaffa, local de origem da espécie, e sim da palavra árabe qahwa, que também pode significar vinho.
 
Ou seja: foi a Arábia e outros países do Oriente Médio que, ao cultuarem a bebida e multiplicarem os endereços que a preparavam, acabaram por massificar e a popularizar a cultura e o hábito de sorvê-la. 

As dezenas e dezenas de kaveh kanes espalhadas pela cidade religiosa de Meca, além de serem locais para meditação e orações a Alá, também eram lugares onde os muçulmanos passavam tardes inteiras conversando e ouvindo música. Territórios eminentemente masculinos, as cafeterias árabes ficaram famosas não só pelo apreciado líquido que serviam mas pelo luxo, suntuosidade e os encontros que proporcionavam aos comerciantes que ali fechavam negócios.


Redutos masculinos, as kaveh kanes celebrizavam a infusão e os encontros de negócios no mundo árabe  - Arquivo Redutos masculinos, as kaveh kanes celebrizavam a infusão e os encontros de negócios no mundo árabe - Arquivo

No Velho Mundo, o café ganhou definitivamente o gosto dos europeus, principalmente os italianos, a partir de 1615. Especialmente em Veneza, o hábito de tomar café esteve associado a encontros sociais e aos saraus musicais que ocorriam na alegre Botteghe del Caffe, também um dos endereços que mais difundiu a prática da torrefação e moagem do café.

Já no restante da Europa, o espírito e a filosofia dos cafés também foi ganhando novas fronteiras. A Áustria, por exemplo, foi "presenteada" pelos turcos com várias sacas de café, em 1687. Na verdade, os invasores abandonaram uma grande quantidade de grãos às portas de Viena, após uma tentativa frustrada de conquista. Este valioso "presente de turco" foi aproveitado prontamente pelos austríacos, que acabaram inventando e consagrando o famoso café vienense.

FALTA-LHE CAFÉ?



Nos cafés parisienses, os intelectuais se reuniam em torno das xícaras para declamar poemas e exercer o debate - Arquivo Nos cafés parisienses, os intelectuais se reuniam em torno das xícaras para declamar poemas e exercer o debate - Arquivo

Os cafés desenvolveram-se na Europa durante o século XVII, enquanto florescia o Iluminismo e se planejava a Revolução Francesa. Durante tardes inteiras, jovens reuniam-se ao redor de xícaras de café, discutindo o destino das nações, declamando poemas, lendo livros ou simplesmente passando o tempo.

Assim, as cafeterias se tornaram ponto de encontro preferido de escritores, políticos e artistas europeus. Na França, onde o café surgiu pela primeira vez em Marselha, em 1644, e, em Paris, anos depois, há relatos de um siciliano de nome Procópio que abriu um estabelecimento em 1688 em frente à Comédie-Française - o Procope, que funciona até hoje na capital francesa. O lugar, além de célebre salão literário, também viraria ponto de encontro obrigatório de atores e escritores para saborear todo tipo de bebida.
 
Voltaire, habitué deste e do Regencia Café, tomava ali, enquanto planejava a Revolução Francesa ao lado dos iluministas Rousseau, Diderot e Condorcet, uma "mistura de café com chocolate", que seria um aparentado da atual receita do capuccino italiano.

Mais ou menos nessa época, as coffee houses inglesas também se multiplicaram em Londres. Alguns desses endereços se tornaram espaços de contestação política, o que provocou o fechamento de alguns deles pelos procuradores-gerais londrinos. Nessa época, os ingleses se revelaram grandes bebedores de café.

Todavia as coffee houses também vendiam chás, o que rapidamente acabou tomando o lugar, como a história confirma, na preferência dos súditos da rainha. Na Espanha, a tertúlia ou a arte da conversa e do debate, presente permanentemente nos cafés, esteve na origem dos principais movimentos artísticos, literários e políticos no país das touradas.

Chegou a ser tão influente que não se concebia um literato ou filósofo que não participasse de pelo menos uma. Sobre aquele intelectual que não frequentava tertúlias se dizia: "Falta-lhe café", apontando a sua falta de visão, conhecimento e profundidade sobre o assunto.

Já na América do Sul, embora mereça menção a Confeitaria Colombo, inaugurada  no já longinquo ano de 1894, no Rio de Janeiro e até hoje de portas abertas, os cafés mais famosos desta parte do continente são os de Buenos Aires. Surgidos na capital argentina, entre o final do século 19 e primeira metade do 20, eles também exalam muito da cultura e do glamour daqueles primeiros cafés de culto à conversa e à reflexão e do saudável convívio social.
 
Caso do mais famoso dos endereços portenhos: o ultratradicional Café Tortonide 1854. O lugar era frequentado por pintores, escritores, jornalistas e músicos que formavam a 'Agrupación de Gente de Artes y Letras', grupo de intelectuais liderado pelo escritor Benito Quinquela Martin.
Até os dias de hoje passa-se ali horas deliciosas sob a charmosa atmosfera da belle epoque e regadas a empanadas e uma boa xícara de café. 
 
Um brinde especial, portanto, às antigas e charmosas cafeterias, ao ambiente de reflexão e ao espírito e bom convívio que proporcionam - contraponto ao isolamento gerado hoje pelo mau uso dos celulares e aos radicalismos de toda sorte dos dias atuais - e, claro, à mais globalizada e festejada das infusões criadas pelo homem. 

+ LIVRO E + CAFÉ 

MUITAS IDEIAS, UM CAFÉ E A CONTA POR FAVOR


 - Arquivo - Arquivo

Imaginar que se está sentado tomando um cafezinho e conversando com um grande pensador do passado numa viagem através do tempo. Foi a partir dessa ideia simples mas genial que o jornalista francês Louis Bériot escreveu 'Um Café com Voltaire - Conversas com as grandes mentes de seu tempo', título em português da obra publicada em 2016 pela Editora Allary, cujo nome original é Un café avec Voltaire - Conversations avec les grands esprits de son temps. 

Logo no lançamento do livro, a crítica francesa atestou que a narrativa de Bériot era deliciosa de se ler, já que o autor faz um misto de biografia, ensaio e romance histórico, convidando o leitor a fazer um passeio pelo Iluminismo, etapa filosófica crucial para o mundo ocidental e a humanidade, com debates sobre o poder, a religião, o fanatismo e a intolerância (Em tempo: isso se passa na França do século XVIII e não no Brasil dos dias de hoje, ok?). 

Tirando proveito do passeio, ele nos apresenta a outros grandes nomes da época como Newton, Montesquieu, Diderot e Rousseau, este último em suas disputas com Voltaire. A pesquisa do Bériot se baseou principalmente nas trocas epistolares desses dois gênios do Iluminismo francês. Além dos fatos históricos em si, uma pitada de criatividade por parte do autor faz o livro parecer que se está presenciando ou mesmo participando de um bom bate-papo entre amigos. Uma leitura, enfim, para lá de saborosa. 


(*) MARCO MERGUIZZO é jornalista profissional especializado em gastronomia, vinhos, turismo e estilo de vida. Confira outras novidades no Instagram (@blog 1gole1garfada1viagem) ou clique aqui e vá direto para a página do blog no Facebook.