Nas lentes do conhecimento

O último frame de Leonardo Henrichsen


Hoje as imagens, os acontecimentos, os diálogos e discursos me fizeram lembrar do cinegrafista argentino Leonardo Henrichsen. Apesar deste blog se destinar as imagens congeladas em um determinado espaço e tempo, vamos abrir um espaço às imagens em movimento que nos iludem na sua atemporalidade e de espaço por vezes duvidoso. 
 
Vamos abrir espaço para as imagens em movimento, para mostrar o ultimo frame do cinegrafista, o momento exato em que seu espaço e tempo foi fixado: sua própria morte. 
 
Acreditamos na tese de que o ser humano inventou a imagem para eternizar a si mesmo e o universo que lhe rodeia para responder um dos maiores paradigmas da humanidade, a morte. Entretanto, este momento de Henrichsen é a regra, e a sua exceção é o objetivo e a própria estrapolação de toda significação do conceito de imagem. 
 
O cinegrafista registrou o próprio momento de sua morte, eternizou seu executor e a si mesmo no mesmo instante, no mesmo frame. Ocupa todo palco da ação; ele é o sujeito e objeto; é a “radicalização da presença da ausência”. 
 
Quando olhamos estas imagens não vemos a morte de alguém e sim encaramos a morte deste alguém com os mesmos olhos que encararam no dia 29 de junho de 1973 o seu executor, a arma de fogo que lhe era apontada. 
 
Como afirmou Hans Belting, historiador de arte alemão, em seu livro Antropologia da Imagem – Para uma ciência da imagem: “Ao dirigir o seu olhar para o mundo, o fotógrafo parece exigir o direito de só ele ser sujeito. O seu direito de autor consiste no direito de dispor livremente da imagem, declarando-se assim como observador soberano do mundo. E, todavia, o papel do autor está em contradição com a sua dependência do motivo e do ato técnico de fotografar, segundo o qual a reprodução do mundo faz parte do programa da máquina. O fotógrafo só pode superar o conflito entre o olhar e o seu tema ou objeto, pelo cultivo do olhar, caso a caso e para cada foto.”
 
Neste último instante, neste seu último suspiro, último olhar, Leonardo Henrichsen superou este conflito se tornando o próprio olhar e objeto em um momento incontestável da irrepetível imagem.  
 


O último frame de Leonardo Henrichsen  -  Leonardo Henrichsen O último frame de Leonardo Henrichsen - Leonardo Henrichsen

 
O cinegrafista argentino registrou o momento de sua morte há mais de 40 anos, em Santiago do Chile, em um dos momentos do golpe de Estado contra o regime de Salvador Allende. 
 
O momento gravado consiste em um espaço de tempo de quase dois minutos, resultando em uma sequência de imagens dos horrores deste GOLPE de Estado. Centenas de pessoas correndo, gritaria, rajadas de tiros. Uma camioneta com alguns militares se apresenta no enquadramento da filmagem, uma composição final. Um dos militares perfeitamente uniformizado se coloca a posar para a câmera, aponta a arma para o operador e efetua o disparo. 
 
Ambos efetuam um click, um dispara, mas de um lado alguém que eterniza para a vida, o cinegrafista, do outro, quem eterniza para a morte, o assassino. A câmera e provavelmente o corpo vão ao chão, a imagem oscila e fica negra, os olhos se fecham. 
 
Durante a ditadura de Pinochet no Chile, estas como muitas outras mortes que acontecem em ditaduras ficaram sem ser investigadas, os assassinos andam entre a população como “cidadãos de bem” balizados por uma suposta ordem.   
 
A história um dia cobra o seu preço, o sangue que realiza estas imagens não é apagado de nossa memória. Os nomes são desonrados e colocados no lixo da história humana. Mas não podemos falar em justiça, porque anos de liberdade e dignidade são roubados do povo, famílias são destruídas, vidas são retiradas. 
 
A morte de Leonardo Henrichsen foi um atentado contra a liberdade, contra a paz do povo, contra o amor de sua família, mas não foi em vão. Ela nos lembra o que na verdade deveríamos relembrar pelas nossas próprias experiências, que o futuro não pode ser a base de arma, sangue, golpes e ditaduras (declaradas ou não).