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Corpus Christi: descubra onde e como é elaborado o vinho eucarístico servido na missa


POR MARCO MERGUIZZO (*)

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"Ele tomou o pão, deu graças e o deu a seus discípulos... Ele tomou o cálice, deu graças novamente e o deu a seus discípulos dizendo: tomai e bebei, este é o meu sangue. O sangue da nova e eterna aliança que é derramado por vós para o perdão dos pecados. Fazei isso em memória de mim".

Recorrente como as palavras de Cristo na Última Ceia reproduzidas em todo ritual da Eucaristia, o vinho é um dos elementos sagrados que estará uma vez mais em evidência durante o ritual da missa nas igrejas católicas de Sorocaba e do mundo todo, nesta quinta-feira, 31/5, na qual se comemora o Corpus Christi, expressão do latim que significa "Corpo de Cristo".

Como se sabe, o pão e o vinho, criações do homem que alimentam o corpo, são representantes simbólicos do corpo e do sangue de Jesus, que na tradição cristã são a "comida" da alma que alimenta a fé e eleva o espírito. Considerado um dos eventos mais importantes do calendário da Igreja, a data celebra o mistério do sacramento da Eucaristia.
 
A origem dessa tradição teve início durante a Idade Média, mais precisamente em 1269. A Igreja Católica viu a necessidade de as pessoas sentirem a presença real de Cristo. Um padre chamado Pedro de Praga vivia angustiado ao duvidar da presença do Filho de Deus na Eucaristia. Decidiu ir em peregrinação ao túmulo dos apóstolos Pedro e Paulo, em Roma, para pedir o dom da fé. Ao passar por Bolsena, na Itália, enquanto era celebrada a consagração durante a Santa Missa, veio-lhe a resposta em forma de milagre: a hóstia branca transformou-se em carne viva.

O Papa Urbano IV pediu para que os objetos fossem levados para Oviedo, na Espanha, em uma grande procissão, e foi neste exato momento que a festa de Corpus Christi foi decretada. No Brasil, a celebração de Corpus Christi é marcada por procissões na maioria dos estados brasileiros, sobretudo em cidades do interior, como as vizinhas Itu e São Roque, por exemplo. A procissão é feita nas ruas, onde ainda resiste, felizmente, a tradição dos tapetes de serragem colorida, e as pessoas podem testemunhar a sua fé.

Muita gente me pergunta sobre o vinho eucarístico. Em geral, a curiosidade recai sobre a procedência, como ele é feito, quais uvas são utilizadas no seu caldo, se só podem ser empregadas castas tintas, enfim, as principais diferenças que há entre o vinho litúrgico e aquele que tomamos normalmente, o "profano", digamos. 

Bem, vamos à taça, digo, ao cálice, "desarrolhar" de vez este tema. O Direito Canônico define regras severas sobre o vinho de altar. De acordo com a norma 924, ele precisa ser feito com uvas amadurecidas completamente, e apresentar graduação alcoólica que garanta a sua boa conservação. "Vinum debet esse naturale da gemine vitis et non corruptum", diz o texto.

Os padres, por sua vez, são proibidos de consumir vinho alterado (ou seja, elaborado com quaisquer outras frutas ou matéria-prima que não seja a uva) ou que contenha conservantes. Isso inclui a utilização de uma única cepa (sem a adição de outros cortes) e teor alcoólico em torno de 12% e 18%.

No rótulo, deve constar obrigatoriamente a autorização eclesiástica em italiano ("Prodotto secondo le regole di vinificazione dei vini ad uso sacramentale, que, em bom português, quer dizer "Produzido segundo as regras de vinificacão dos vinhos destinados a uso sacramental") e o selo da Curia cunhado em cera-laca sobre a cápsula da rolha.


A última ceia de Jesus com os apóstolos: o mistério eucarístico em que o pão é corpo e o vinho, sangue  - Arquivo A última ceia de Jesus com os apóstolos: o mistério eucarístico em que o pão é corpo e o vinho, sangue - Arquivo

O código do Direito Canônico deixa livre, porém, o item que fala sobre a cor do vinho, não havendo obrigatoriedade que seja tinto. No entanto, ele só pode ser substituído por uma bebida não-alcoólica em situações excepcionais, e com autorização do bispo local, para atender diabéticos, alcoólatras e ex-alcoólatras e portadores de outras doenças graves.

Na Europa, grande parte dos vinhos de missa ainda é produzida nas adegas dos mosteiros das grandes ordens religiosas. Mas há também os produtores autorizados a fornecer o "líquido santo", cujas fases de produção são controladas por um representante da Igreja.

É o caso da Vinícola Bava, de Roberto Bava. Com o aval da Cúria local, sua vinícola faz o Malvaxia Sincerum, um tinto feito com a técnica de secagem e passificação das uvas (semi-appassite, ou parcialmente transformadas em passas), a partir das uvas malvasia de schierano, típica do distrito de Castelnuovo Don Bosco.

Este corte, aliás, de caráter camaleônico, serve também de cepa-matriz a outros vinhos italianos. Caso do Frascati romano, um branco seco, e dos doces cannellino e vinsanto, o tradicional vinho de sobremesa da Toscana. No caso do passito litúrgico de Bava, a malvasia aparece solitária, sem estar misturada a outras uvas, como recomenda o Vaticano. Com boa intensidade aromática, cor rubi e sabor doce aveludado, apresenta teor alcoólico em torno de 15º.

Também da lavra de Bava, o branco licoroso Alleluja, feito à base da aromática uva moscato, exibe igualmente o carimbo "Vinum pro sancta missa" do Vaticano. Quem o produz é a Casa Brina, também de sua propriedade. Com 16º de álcool, esse branco doce de cor amarelo-dourada apresenta aroma almiscarado e toques florais. Na boca, seu sabor lembra uvas maduras. Tanto o tinto Mavasia Sincerum quanto o branco Alleluja abastecem os cálices de Sua Santidade.

De acordo com o produtor, o vinho litúrgico deve ser doce, já que se conserva melhor depois de aberto. Explica-se: a cada missa, o padre bebe entre 35 e 50 ml de vinho. O baixo consumo obriga o sacerdote a manter a garrafa aberta por vários dias, aumentando o risco de oxidação da bebida.

Na Itália, consome-se anualmente 1,2 milhão de litros de vinho de missa. No Brasil, a tradicional vinícola Salton, situada em Bento Gonçalves (RS), domina 70% desse mercado, produzindo cerca de 350 mil litros por ano. Sem acesso aos vinhos com aprovação eclesiástica, muitos padres do interior do país usam, no entanto, tintos e brancos comuns, sem nenhum controle de origem e produção.

Autorizada pela Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, a Salton faz há mais de 80 anos, o licoroso Canônico, com a uva americana Herbemont. É um tinto bem doce, com graduação alcoólica de 16º e que lembra na cor (apenas) um Porto envelhecido. Até hoje é envasado em garrafões de 5 litros, além de garrafas de 750 ml.

VINHO LITÚRGICO: A SIMBOLOGIA POR TRÁS DA BEBIDA


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"Ele tomou o cálice em suas mãos. Deu graças e ofereceu a seus discípulos dizendo: "Tomai e bebei todos vós. Este é o meu sangue, o símbolo da Nova Aliança que é derramado por vós. Fazei isso em memória de mim." (Lucas 22, versículos de 7 a 20).

Desde que disse essas palavras, há mais de 2 000 anos, no seu último encontro à mesa com os apóstolos, Jesus mais do que ressublinhar a importância e a sacralidade do vinho na cultura judaica-cristã, sabiamente concedeu um novo significado à Páscoa, eternizando-se na mente e no coração dos cristãos. Desde então, o vinho, com as bênçãos do próprio Filho de Deus, passou a integrar o ritual da Santa Missa na instituição da Eucaristia.

Tal sacramento e a própria consagração do vinho, no entanto, agregaram ao longo do tempo vários elementos religiosos e pagãos. Os antigos romanos, decerto, não viam muita diferença entre os primeiros cristãos – aparentemente judeus, adeptos do que chamavam o culto do Nazareno – e os seguidores de Baco.

Havia paralelos suficientes para justificar a confusão. O que se sabia acerca dos rituais cristãos não os distinguia muito dos bacanais. Ambos eram realizados secretamente e acreditava-se que envolviam festins canibais, já que seus devotos comiam o "corpo" e bebiam o "sangue" do seu Deus.

Além disso, o simbolismo do sacrifício cristão desenvolveu-se no contexto da tradição grega, não da judaica. Em grego, theos, "deus", deriva da palavra que designa fumaça. A mesma raiz, thusia, ainda se conserva na palavra entusiasmo, que significa, portanto, "repleto de Deus". Assim, na Grécia pagã, constituía um ato sagrado queimar a carne no altar para alimentar os deuses com a fumaça e, em seguida, comê-la.

DE BEBIDA PAGÃ A SÍMBOLO RELIGIOSO NO MUNDO JUDAICO-CRISTÃO


A água transformada em vinho nas bodas de Canaã: o primeiro dos muitos milagres públicos de Cristo - Arquivo A água transformada em vinho nas bodas de Canaã: o primeiro dos muitos milagres públicos de Cristo - Arquivo

Outro ato igualmente divino, que remete à Grécia antiga e a outras civilizações pré-cristãs, consistia, em beber sangue, ou sangue misturado ao vinho, ou vinho simbolizando sangue. A palavra grega "eucharistia", portanto, designava tais ritos e não a celebração nos moldes judaico-cristãos.

Por sua vez, a cerimônia do vinho no contexto da fé e da formação judaica de Jesus tinha um outro significado. A íntima relação do povo judeu com o vinho percorre suas leis, sua literatura e é, enfim, a própria essência de sua civilização. Para um judeu, não existe vida comunitária, religiosa ou familiar sem vinho.

Além disso, desde cedo, as crianças judias têm contato com o vinho, no ambiente familiar e num contexto religioso, em que sempre se bebe com moderação. O primeiro milagre de Jesus, por exemplo, foi registrado em Canaã. Consistiu em resolver o problema da falta de vinho em um casamento. Jesus ordenou que enchessem seis talhas com água do poço. Minutos depois, o conteúdo havia se transformado em vinho.

E detalhe que não passou despercebido a São João, o evangelista, o narrador do milagre: o vinho era melhor que o fornecido pelo noivo. Além desta passagem, somam mais de duas centenas as referências na Bíblia sobre a bebida e outras referências enológicas como vinhedos, vinhas, trabalhadores e produtores. A começar pelo porre de Noé, no livro do Gênesis (capítulo 9, versículos de 18 a 28), no Velho Testamento à parábola dos vinhateiros já no Novo (Lucas 20, versículos de 9 a 19).

Com o aval do imperador Constantino recém-convertido, só no século 4 a Eucaristia torna-se a liturgia que, até hoje, é mantida pelo Vaticano. Duzentos anos depois, com o contexto expansionista das ordens religiosas, com a fundação de templos e mosteiros e a multiplicação de fiéis católicos por toda a Europa, surge a necessidade de se aumentar a produção de vinhos litúrgicos para atender a demanda da Igreja.

O vinho torna-se, então, indispensável para o ato sagrado da comunhão. Os documentos canônicos da época evidenciam a obrigatoriedade do uso do vinho genuíno da videira na celebração da missa (produto designado por "não corrompido", ao qual tivesse sido apenas adicionada uma pequena porção de água). Medida fundamental para diferenciá-lo dos chamados "vinhos pagãos" elaborados por romanos e gregos, os quais acrescentavam, muitas vezes, resina, absinto, açafrão, mel e pimenta moída, entre outros ingredientes "exóticos".

Além disso, o vinho medieval, no geral, era fabricado às pressas. Muitas vezes com uma mistura aleatória de uvas e pouco ou nenhum conhecimento de preservação. Com as novas regras, algumas ordens religiosas ampliam consideravelmente o território dos vinhedos e desenvolvem de forma expressiva as técnicas de vitivinificação.

Com isso, atingem grandes produções, boa qualidade e fama como produtores de vinho. Excetuando-se a região ao redor de Bordeaux, no sudoeste da França, a Igreja Católica torna-se, então, a maior produtora de vinhos na Europa. Entre as grandes ordens, os beneditinos, sobretudo, desempenham um papel crucial na expansão e no desenvolvimento da vitivicultura em todo o continente europeu.

Santo Tomás de Aquino, o grande frade-filósofo do século 13, é quem resume, porém, com exatidão o significado do vinho na missa: "O sacramento da Eucaristia só pode celebrar-se com vinho da videira, pois essa é a vontade de Cristo Jesus, que escolheu o vinho quando ordenou tal sacramento (...) e também porque o vinho da uva constitui de certo modo uma imagem do efeito do sacramento. Refiro-me à alegria da alma, pois está escrito que o vinho alegra o coração do Homem". E nele, Cristo revive na Eucaristia, e em espírito, através dos tempos. Amém.

O VINHO NO ALTAR: EM BUSCA DA "SANTA" QUALIDADE


Uma das vinícolas que integram o movimento Uma das vinícolas que integram o movimento "O Vinho no Altar", a Bava busca a excelência da bebida no cálice - Arquivo

Desde o final dos anos 80, um grupo formado por produtores italianos, mais sacerdotes, historiadores, liturgistas e especialistas em enologia vêm melhorando a qualidade do vinho de missa a partir da cidadezinha Castelnuovo Don Bosco, na província piemontesa de Asti, situada no Norte da bota que o mapa da Itália desenha.

À época, o grupo afirmava pela primeira vez e com boa dose de razão, com o perdão do trocadilho, que os vinhos litúrgicos italianos não tinham acompanhado o salto qualitativo dado a partir dos anos 70 pelos grandes tintos e brancos daquele país, de enorme e longeva tradição vinícola. Mais: acreditavam que a Eucaristia - o momento da missa em que o vinho é transformado simbolicamente no sangue de Cristo - mereceria uma bebida melhor.

Apoiados por alguns bispos, os pioneiros fundariam no ano de 1987 "O Vinho no Altar" - um grupo de estudos que propunha aprimorar as técnicas de vinificação dos vinhos de missa e, por extensão, a elevação da qualidade da bebida litúrgica.

Como fruto do trabalho de mais de uma década, surgiram dois novos vinhos: o tinto doce Malvaxia Sincerum e o branco licoroso Alleluja, elaborados respectivamente pela vinícolas Casa Bava e Brina, ambos de propriedade de Roberto Bava, um dos fundadores do grupo. As duas bebidas, por sinal, abastecem oficialmente até hoje a adega do Vaticano e consagradas durante as missas ministradas pelo papa Francisco.

Mas foi a partir de uma visita de João Paulo II à Castelnuovo Don Bosco, na província de Asti, em 1988, que o grupo de Bava passou a ampliar as suas atividades, aprofundando-se não só na melhoria da qualidade do vinho eurcarístico mas no aperfeiçoamento da pesquisa, litúrgica e científica sobre o vinho de missa e o papel das religiões na difusão da cultura dos vinhedos.

A sede de atividades de "O Vinho no Altar" fica em Casa Brina, no centro cultural da Azienda Vitinicola Bava di Cocconato D"Asti. Os responsáveis pelo programa de estudos e encontros são Roberto Bava e Paolo Massobrio.

Até 2001, o Grupo de Estudos já organizou seis convenções internacionais com painéis atualizados sobre o vinho no universo cultural-religioso. Especialistas, produtores e representantes da Igreja de toda a Europa integram as comissões de degustacão. Paralelamente, a Casa Brina também sedia uma mostra permanente de vinhos de missa produzidos em todo o mundo.

CÁLICE DE OURO OU TAÇA DE VIDRO? QUAL O COPO CERTO?


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Já que o vinho consagrado assume a equivalência do sangue de Jesus durante a Eucaristia, a Igreja também recomenda o uso do cálice feito de material puro e inexpugnável. Nada portanto de taças de vidro ou de outro tipo de material que, embora pudesse facilitar a melhor apreciação da bebida como se faz em qualquer degustação, na celebração da Eucaristia não seria o caso.

Ou seja: a Igreja recomenda que os cálices devem ser banhados a ouro (ou com outro metal) ou, pelo menos, serem revestidos em sua parte interna com essa matéria-prima, por questões de conservação e higiene.

Em princípio, o cálice de cristal também poderia ser uma opção, já que permite aos fiéis visualizar melhor a bebida. Mas o Código Canônico não admite, em hipótese alguma, a perda do vinho já consagrado, em caso de uma possível quebra da taça.

TINTO OU BRANCO?



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Embora o atual código do Direito Canônico deixe livre a questão sobre a cor do vinho de missa, a discussão não é nova e alimentou, há mais de 800 anos, uma guerra nada santa envolvendo armênios e a Igreja ortodoxa grega. Por se recusarem a misturar água a seu vinho, os primeiros acabaram entrando em conflito com a poderosa instituição grega.

Em 1178, os armênios propuseram, em vão, um meio-termo: acrescentariam água, desde que os gregos abrissem mão da água quente. O conflito prosseguiu. Por fim, os litigantes encontraram um árbitro neutro, um muçulmano. Depois de ouvir os dois lados, este recomendou usar água pura, já que o vinho era um líquido impuro, proibido pelo Alcorão.

Os debates prosseguiram, agora para definir se o vinho devia ser tinto ou branco. Favorecia o tinto o fato de que parece sangue; o branco, o fato de que a bebida rubra manchava a toalha do altar. Sobre isso, alguns sacerdotes tendem a preferir este último. Mas, mais por uma questão prática do que organoléptica, já que o vinho tinto costuma macular suas roupas e paramentos geralmente muito alvos.


(*) Marco Merguizzo é jornalista profissional especializado em gastronomia, vinhos, turismo e estilo de vida. Confira outras novidades no Instagram (@blog 1gole1garfada1viagem) ou clique aqui e vá direto para a página do blog no Facebook.