OUTRO OLHAR

Prisioneiros de Clarice


Carlos Araújo
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 - ARTE: LUCAS ARAÚJO - ARTE: LUCAS ARAÚJO


Clarice Lispector é uma escritora brasileira, uma autora que só se revela por inteiro a quem se apaixona por ela, uma criadora de universos que se chocam. Ela nos aprisiona num campo minado de sedução, mistério, estranhamento. E quem se deixa prender descobre que ela é interrogação permanente, companhia na solidão do cotidiano, espécie de guia numa viagem ao desconhecido.

A escritora apaixonante ainda evoca essas impressões 43 anos passados desde que li pela primeira vez o seu romance mais perturbador, "A paixão segundo G.H". Este é justamente o livro mais enigmático, indescritível, desconcertante, dessa escritora que morreu em 1977 no auge da maturidade.

Desde dezembro do ano passado, por ocasião dos 40 anos da sua morte, tenho revisitado os romances, contos e crônicas de Clarice. E a experiência é como o retorno a uma batalha nunca vencida e da qual não se consegue sair sem "ferimentos".

Ler de novo "A paixão segundo G.H." significa renovar a primeira impressão causada pela obra. Perguntas brotam, escapam: o que é isso? o que o texto quer dizer? por que ela escreve desse jeito? As indagações ficam no ar. Não há respostas.

O romance se arrasta como em ondas, como um fluxo de consciência, como uma confissão. Comparações são saídas possíveis porque nenhuma tese explica nada. O livro oculta um sentido da existência e é por isso que não envelhece após quatro décadas da primeira leitura.

A história (é uma história?) apresenta uma mulher num apartamento em busca de coisas intocáveis. Ela entra no quarto da empregada, que foi embora, e seu propósito é arrumar um ambiente que imagina estar bagunçado. Para sua surpresa, o quarto está limpo, em ordem, e o problema é que ela se depara com uma barata. Fala do inseto como se ele tivesse dimensões humanas e a partir de então trava-se um combate filosófico entre as duas criaturas vivas no interior do quarto, ela e a barata.

A obra também é uma experiência de linguagem. Faz suspeitar da influência francesa do "nouveau roman". Nada que comprometa a originalidade. As frases traduzem o embate feroz entre a mulher e a barata, e abarcam o mundo.

"Meu erro, no entanto, devia ser o caminho de uma verdade: só quando erro é que saio do que conheço e do que entendo", diz G.H. "Se a "verdade" fosse aquilo que posso entender terminaria sendo apenas uma verdade pequena, do meu tamanho."

À medida em que a leitura avança, surpreende a impressão de que uma voz silenciosa (perdoem a figura de linguagem) marca o ritmo de cada frase, de cada palavra, de cada pausa. Seria a voz de G.H. ou de Clarice? Ou elas são uma única criatura?

É possível conhecer Clarice e ouvir sua voz numa das últimas entrevistas. A gravação pode ser acessada no YouTube. Para quem desejar ir além do vídeo, a dica é a biografia "Clarice,", de Benjamin Moser.

Porém, nada como os romances, os contos e as crônicas para entrar na atmosfera dessa autora única. A escritora Edla van Steen a classificou como o maior nome da literatura brasileira, até mesmo acima de Machado de Assis, segundo descrição reproduzida por Ignacio de Loyola Brandão em uma de suas crônicas.

"Uma galinha", um dos contos magistrais de Clarice, é um clássico da história curta. Não é exagero afirmar que, se fosse autora de língua inglesa, estaria na mesma galeria de prestígio de Virginia Woolf e Katherine Mansfield.

Nada em Clarice é óbvio: nem a forma, nem o conteúdo, nem a linguagem. Imagine uma estrada coberta de nevoeiro. Você reduz a velocidade e acende o farol baixo. A visibilidade diminui a cada momento. O nevoeiro se concentra, cada vez mais compacto, como um inimigo que ameaça a sua segurança. Não há como parar, não há acostamento. Dos dois lados da estrada se estende o precipício. Pressionado pelo pânico, o jeito é avançar, temendo pela próxima curva.

Aventura humana. Risco máximo. Adrenalina à flor da pele.

Assim é ler Clarice e aceitar a condição de prisioneiro das suas perturbações, que compõem a radiografia da alma humana em tempos de perdição.