Patrimônio da mesa caipira, pamonha e pratos que levam milho dominam a mesa junina como a de São João, neste domingo
POR MARCO MERGUIZZO (*)
(*) Siga também no Instagram o conteúdo exclusivo do @blog1gole1garfada1viagem
"Pamonhas, pamonhas, pamonhas... pamonhas fresquinhas! Pamonhas de Piracicaba: o puro creme do milho!" Quem não se lembra com certa nostalgia desse antológico bordão repetido à exaustão por uma voz monocórdia anunciando o quitute à base de milho, vendido em velhas Kombis e caminhonetes equipadas com potentes e ensurdecedores alto-falantes que perambulavam por Sorocaba e demais cidades da região, nos fazendo salivar?
Embora façam sucesso o ano todo, a pamonha e outras prendas que levam milho em sua receita são patrimônio da culinária caipira e costumam reinar à mesa durante esta época de festejos juninos.
Neste domingo, 24, data em que se comemora São João (para quem não sabe, é o Batista, aquele que antecedeu e preparou a chegada de Jesus) será uma oportunidade para reviver uma vez mais tais momentos saboreando uma caneca de quentão pelando de quente, bolo, pamonha, curau, pipoca, canjica e demais delícias feitas de milho.
Base da alimentação de antigas populações indígenas, o milho é originário das Américas. Presente em todas as culturas e civilizações do nosso continente - dos Incas aos Maias, dos Índios americanos aos Tupis - o cereal é uma das maiores contribuições do território americano para a alimentação e culinária mundiais.
Alimento sagrado para os nativos das Américas, o milho viajou nas caravelas espanholas para conquistar o planeta. Cristovão Colombo comeu milho com os indígenas da ilha que viria a ser Cuba, séculos depois. E gostou, pois escreveu em seu diário de bordo, no dia 5 de novembro de 1492, que aquele desconhecido grão era "muito saboroso cozido ao forno ou reduzido a farinha".
O "programa de índio" ou, melhor, a saga marítima do maior desbravador do período das Grandes Navegações resultou no primeiro contato dos europeus com o cereal que alimentava os nativos do Novo Mundo havia milênios.
Segundo estudos antropológicos, o milho teria surgido no México. Essa provável origem é confirmada por vários registros das civilizações pré-colombianas que acreditavam que a pátria dos Maias havia surgido do milho, tanto econômica quanto metaforicamente.
Segundo a mitologia do extinto povo Maia, bem como o texto bíblico do Gênesis, o primeiro homem teria sido feito de barro - e não deu certo. Insatisfeitos, os deuses também teriam fracassado em sua segunda tentativa ao substituir a argila pela madeira. Enfim, a criação da espécie humana só se tornou bem-sucedida quando os deuses resolveram misturar a farinha de milho ao seu próprio sangue. Pura e deliciosa metáfora.
ALIMENTO SAGRADO, NUTRITIVO E CULINARIAMENTE VERSÁTIL
Embora os Maias e a sua civilização, uma das mais desenvolvidas da Antiguidade, tenham desaparecido, o mito acerca do milho resistiu entre os seus descendentes contemporâneos - os mexicanos. Na língua dos índios nahuad, a palavra quase impronunciável "toneuahcayatl" significa tanto "massa de milho quanto "nossa carne".
Na plural e instigante culinária do México de hoje, o milho originou, por exemplo, os hoje globalizados tacos, tortillas de maiz, tamales e enchiladas, sob a forma de comida Texmex, o fast-food norte-americano.
Alimento essencial e sagrado para os povos das pradarias norte-americanas aos Andes no lado oposto do continente, o milho depois de Colombo foi tratado com desdém pelos conquistadores espanhóis. Era um grão menor que o trigo. Em contrapartida, era ótimo como ração animal e, em meio aos metais e outros tesouros surrupiados, sobrava espaço nas naus para as sementes.
Resultado: em menos de um século, o milho estava sendo plantado e consumido na África, Índia e China. Hoje é o segundo cereal mais cultivado no planeta, ficando atrás do trigo. Discussões à parte sobre alimentos transgênicos, o Brasil é, há anos, o terceiro maior produtor do mundo, com 8% do total produzido no mundo, o equivalente a 86 milhões de toneladas, perdendo só para EUA e China.
No ranking nacional, ocupa o posto de vice, perdendo só para a soja. (Em tempo: o Peru é um capítulo especial na produção de dezenas de tipos autóctones de milho. Em breve, dedicarei um post sobre a culinária peruana, no qual falarei sobre o cereal e as mais 3 mil espécies de batatas existentes naquele país).
No Brasil, o milho é associado a uma tradição caipira que culmina nos festejos juninos. O fubá faz o bolo e o angu. A farinha em flocos é a base do cuscuz, do virado e da farofa. O amido - ou a popular maisena - matéria-prima de sequilhos e de outros quitutes juninos. As espigas de milho verde são cozidas ou assadas na brasa.
Até a palha enrola o pamonha e o fumo de corda do matuto. Sem contar a pipoca. E por que o milho estoura?, muito curioso quer saber. Bem, vamos lá: os cientistas atribuem o fenômeno à pressão criada no grão superaquecido, mas a explicação dos índios norte-americanos é bem mais lúdica e criativa: os deuses de dentro do cereal, furiosos com o fogo que superaquece as suas "casas", explodem de raiva quando o calor se torna insuportável. Bem mais atraente e instigante, a ciência neste caso se dobra à imaginação e à saborosa interpretação das divindades indígenas.
PAMONHA: DOCE CAIPIRA DE ORIGEM INCERTA
Embora alguns estudos apontem que antigas civilizações andinas já a preparavam de modo rudimentar há mais de 5.000 anos uma receita assemelhada à pamonha, a preparação como a conhecemos hoje é de origem incerta: pode ser indígena ou mesmo africana, apontam os historiadores.
Bastante comum nos estados de Goiás, Minas Gerais, São Paulo e Paraná, o termo provém da palavra tupi pa'muña, que significa "pegajoso". Embora um tanto trabalhoso, o modo de preparo da pamonha é bastante simples e requer poucos ingredientes. O milho verde é ralado grosseiramente e, à massa resultante, são misturados leite (ou leite de coco) e açúcar. Em Minas e Goiás, é costume acrescentar queijo Minas e nos estados da região Nordeste, o queijo coalho.
A seguir, essa massa é colocada na palha do milho, que é dobrada nas extremidades e embrulhada como um envelope ou saquinho. Submetida ao cozimento, a pamonha vai engrossando pacientemente no fogo até alcançar uma consistência firme e macia. Além da receita tradicional, que é doce, há hoje inúmeras variações de pamonha: a salgada, a recheada com queijo e até sob a forma de bolo.
A cidade de Piracicaba, a cerca de 102 km de Sorocaba, se tornou célebre pela produção de pamonhas entre os anos 1960 e 1970, quando a família Rodrigues fabricava diariamente centenas de milhares de pamonhas e as distribuía por todo o estado de São Paulo. Tornaram-se nacionalmente conhecidas as chamadas dos alto-falantes dos vendedores: "Pamonhas, pamonhas fresquinhas, pamonhas de Piracicaba, é o puro creme do milho! Venham experimentar estas delícias… Pamonhas, pamonhas, pamonhas…".
FESTAS JUNINAS: DE CULTO PAGÃO À TRADIÇÃO CRISTÃ
Comemorar o mês de junho é um hábito antigo em várias partes do mundo. Antes do nascimento de Jesus, os povos pagãos do Hemisfério Norte celebravam o solstício de verão, o dia mais longo e a noite mais curta do ano, que, lá, acontece em junho, mais precisamente nesta época, na segunda quinzena.
As festas ocorriam para pedir aos deuses a fertilidade da terra e garantir boas colheitas nos meses seguintes. Com o avanço do Cristianismo, a Igreja incorporou a tradição e, no século 6, os ritos da festa do dia do solstício, em 21 de junho, passaram para o dia do nascimento de São João Batista, em 24 de junho.
Mais tarde, no século 13, foram incluídas no calendário litúrgico as datas comemorativas de Santo Antônio (dia 13) e São Pedro (dia 29). É por isso que esses três santos são os padroeiros das festas juninas. As festas juninas no Brasil são, em sua essência, multiculturais, embora o formato com que hoje as conhecemos tenha se originado nas festas dos santos populares em Portugal: a Festa de Santo Antônio, a Festa de São João e a Festa de São Pedro e São Paulo
No Brasil, recebeu o nome de "junina" (chamada inicialmente de "joanina", de São João), porque acontece no mês de junho. Além de Portugal, a tradição veio de outros países europeus cristianizados dos quais são oriundas as comunidades de imigrantes, chegadas a partir de meados do século 19. Ainda antes, porém, a festa já havia sido trazida ao Brasil pelos portugueses e logo foi incorporada aos costumes das populações indígenas e afro-brasileiras.
(*) Marco Merguizzo é jornalista profissional especializado em gastronomia, vinhos, turismo e estilo de vida. Confira outras novidades no Instagram (@blog 1gole1garfada1viagem) ou clique aqui e vá direto para a página do blog no Facebook.