1 gole, 1 garfada, 1 viagem

Chefs estrelados se engajam a causas sociais usando ensinamentos culinários e o tempo fora da cozinha para fazer o bem e transformar vidas


POR MARCO MERGUIZZO (*)

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Não, não se engane. Por trás da dolmã e do avental de chef de cozinha e da coleção de prêmios das publicações gastronômicas se esconde uma incansável instrutora de merendeiras tida como "fera" (em ambos os sentidos) no comando do seu festejado restaurante no Centro velho de São Paulo.
 
Ao lado dela também se incluem nessa seleção de profissionais do fogão, uma culinarista decana de cozinha brasileira que dá aulas para mães carentes. Além de um conhecido masterchef de programa de TV que desvenda os segredos da profissão de cozinheiro para crianças especiais. E um outro que reensina a garotada de uma comunidade de pescadores do Litoral Norte a dar os primeiros passos no ofício e, de quebra, a revalorizar a culinária caiçara e as suas raízes.

Bem longe, portanto, de uma ação esporádica assistencialista ou jogada de marketing pessoal, esse grupo de profissionais sua e honra o uniforme de cozinheiro usando a gastronomia, o conhecimento e parte de seu precioso tempo para, fora do território profissional, se engajar de corpo e alma a iniciativas sociais e ambientais, colocando a mão na massa e sujando de verdade o avental para fazer o bem e transformar vidas.


UMA "ONÇA" SOLTA NA ESCOLA


Para melhorar a qualidade da merenda escolar em São Paulo, a chef Janaina Rueda bota a mão na massa literalmente - Arquivo Para melhorar a qualidade da merenda escolar em São Paulo, a chef Janaina Rueda bota a mão na massa literalmente - Arquivo

Chef-proprietária do festejado Bar da Dona Onça, no centro de São Paulo, Janaina Rueda é uma das integrantes desse time do bem que busca ir além dos fogões, participando de uma ação voluntária que beneficia milhares de estudantes das escolas públicas da capital paulista.

Como se sabe, profissionais consagrados como Janaina estão na maior parte do tempo às voltas no dia a dia com a operação de seus estabelecimentos, dividindo-se em múltiplas tarefas, como a compra de ingredientes, a criação de novas receitas ou a execução de novos pratos e menus, o treinamento da equipe e tudo enfim o que envolve a longa e exaustiva jornada de um restaurante.
 
Desde meados de 2016, Janaina treina merendeiras e dribla a mesmice dos cardápios escolares, reformulando-os e criando pratos saborosos para a alegria da garotada na hora do recreio através do projeto "Cozinheiros da Educação". 

Nas receitas, a chef substitui invariavelmente todo tipo de enlatados por preparações de sabor caseiro. Em vez de salsichas, nuggets de frango e demais produtos ultraprocessados brilham no prato da meninada carne de panela, macarrão com molho de moela (ou de sardinha), feijoada, cuscuz paulista e outros produtos e ingredientes frescos e de qualidade - jamais os industrializados -, preparados com sabor caseiro.

Para sua satisfação, a primeira escola em que iniciou esse trabalho foi na que ela estudou ainda meninota: a Escola Estadual Maria José, situada na Bela Vista, na região central de São Paulo. Desde o início, a ideia era dar mais sabor às receitas, tornar a merenda mais atraente, além de orientar as merendeiras sobre a história dos pratos e passar conhecimento com eles", ressalta. "Minha missão é o de transformar as merendeiras em cozinheiras pela educação. Nuggets e salsicha nunca mais", decreta a chef.

O projeto no qual Janaína é uma das principais protagonistas tem metas bastante ambiciosas para 2018: além das escolas públicas da capital paulista, o objetivo é treinar e reeducar as mais de 7.000 merendeiras a fim de oferecer uma alimentação de melhor qualidade para cerca de 2,8 milhões de alunos em todo o Estado. Uma coisa, porém, é certa: trabalho duro, doação e empenho pessoal são ingredientes que jamais faltam na receita de sucesso de Janaina.

COZINHANDO COM UM MASTERCHEF



A voz tonitroante do chef Henrique Fogaça fica doce na hora de ensinar crianças e adolescentes com Down a cozinhar  - Arquivo A voz tonitroante do chef Henrique Fogaça fica doce na hora de ensinar crianças e adolescentes com Down a cozinhar - Arquivo

Como o faz desde 2009, 2018 será o nono ano no qual o chef Henrique Fogaça seguirá rumo ao Instituto Chefs Especiais, no bairro do Pacaembu, região central de São Paulo, para dar aulas de culinária a crianças, adolescentes e adultos portadores da síndrome de Down.

Uma vez por mês esta é a rotina que o célebre jurado do reality MasterChef das telinhas faz questão de cumprir, quando não está comandando e supervisionando as cozinhas consagradas de seus restaurantes e bares, em bairros nobres de São Paulo.

Porém, mais do que um mero ato mecânico, esse compromisso se tornou satisfação única para Fogaça ao ver, por exemplo, a alegria de seus alunos em colocar a mão na massa -literalmente - na hora de preparar com ele uma pizza ou um gnocchi caseiros.

Antes de ligar-se ao instituto, cujo trabalho vital foi lhe apresentado por meio de um fornecedor fabricante de panelas gourmet, ele já lidava em casa com a síndrome da filha mais velha, a pequena Olivia. A frustração em não poder cozinhar para a sua menina, que se alimenta por sonda, foi em parte sublimada pela força interior, entusiasmo e troca de energias que imperam nas oficinas de culinária ministradas por ele há quase uma década de forma ininterrupta.

"A aula é informal, eu fico lá batendo papo e me divertindo com a criançada", explica o sempre sisudo chef midiático, cuja voz grave e tonitroante conhecida vira mansa e derretida ao falar dos alunos. De profissional exigente na cozinha e jurado implacável de aprendizes no reality da TV aberta, só mesmo essa turminha para lá de especial para tirar-lhe um sorriso e revelar o seu lado mais doce e humano.

AULA DE MÃE PARA MÃES


A chef Mara Salles atravessa a cidade de São Paulo para ensinar mulheres carentes da Zona Leste truques da cozinha - Arquivo A chef Mara Salles atravessa a cidade de São Paulo para ensinar mulheres carentes da Zona Leste truques da cozinha - Arquivo

Quando conheceu a Fundação Tide Setubal há mais de uma década, a chef Mara Salles do restaurante Tordesilhas, nos Jardins, atravessou a cidade para dar a sua primeira aula no remoto Jardim Lapenna, uma das últimas fronteiras da zona leste paulistana. Levou quase 2h para chegar lá.

Desde então, todo mês de maio, no qual comemora o seu aniversário, ela reserva pelo menos três dias para repetir a viagem e reencontrar cerca de 30 mulheres, algumas delas mães solteiras, atendidas pelo Galpão da Cidadania naquela instituição.

No tempo em que passa com o grupo, Mara que também é mãe e filha afetuosa, ensina desde técnicas, receitas e truques da cozinha quanto noções de economia doméstica, evitando de quebra o desperdício de alimentos, abrindo-lhes ainda a possibilidade de atuarem em uma cozinha profissional.

Aprendem, por exemplo, como cortar legumes em tirinhas finas ("à julienne"), em cubos (brunoise), além de desenvolver outras técnicas básica, como queimar uma berinjela na boca do fogão ou combinar um molho salgado com um ingrediente doce, mas que na realidade delas são praticamente desconhecidas.

"São coisas bem práticas que abrem possibilidades para elas possam trabalhar, caso desejem, num restaurante por quilo, por exemplo", observa Mara. Por sinal, muitas delas acabam trilhando esse caminho no mercado de trabalho, usando as aulas para se capacitarem. "Isso é uma vitória para a gente", orgulha-se. Para a chef, além do aspecto educativo, esse trabalho social proporciona uma inestimável troca de energias para ela.

"Na periferia me sinto como se estivesse no interior: os vizinhos se falam, as pessoas conversam tranquilamente nas calçadas", compara. "Por vezes, sinto que recebo mais que dou. É uma relação de mão dupla", diz para em seguida emendar: "Quando se faz o bem, se recebe o bem". Lição ensinada, lição aprendida: nota 10, chef.

RAÍZES CAIÇARAS NA PANELA 


Na cozinha, com uma folha de taioba nas mãos, Eudes forma futuros cozinheiros que valorizam suas próprias raízes - Arquivo Na cozinha, com uma folha de taioba nas mãos, Eudes forma futuros cozinheiros que valorizam suas próprias raízes - Arquivo

Tendo seu nome originado curiosamente pelo fogo de artifício usado em festas populares no interior do Brasil - o Projeto Buscapé nasceu no litoral Norte paulista há quase dez anos. Devido ao alto índice de atropelamentos na rodovia Rio-Santos - "apelido" que recebe neste trecho a BR-101 que liga de norte a sul do país toda a costa brasileira -, a ação tinha como objetivo inicial mobilizar e educar as crianças e adolescentes moradoras das comunidades locais de baixa renda, buscando diminuir os acidentes fatais dessa parte da costa paulista.

O projeto ampliou seu escopo social e hoje oferece às crianças e adolescentes que residem nas belas praias da região oficinas de culinária, além de aulas de judô, artes, teatro e outras atividades culturais. São, no total, 170 crianças atendidas pelo projeto.

Conhecido divulgador da cozinha caiçara, além de ter nascido lá, o chef Eudes de Assis do elogiado restaurante Taioba, em Camburi, logo se tornou um de seus principais membros e incentivadores. Caçula de 14 filhos, filho de um estivador de Santos e de uma dona de casa, Eudes, que é formado pela Le Cordon Bleu de Paris, ensina desde 2012, toda segunda-feira, religiosamente, a garotada da região não só a preparar receitas mas a resgatar pratos caiçaras (como o quase extinto azul marinho) e a revalorizar pescados, ingredientes e a própria culinária regional.
 
Outro objetivo é que muitos desses meninos e meninas possam trabalhar futuramente em cozinhas profissionais de restaurantes e hotéis não só da região mas em qiualquer lugar do mundo, como o próprio Eudes.
 
Além das aulas regulares, o chef também organiza anualmente, desde, 2012, entre os meses de junho e julho, os chamados "arraiais gastronômicos" para arrecadar fundos visando a manter e a promover melhorias na sede do projeto Buscapé, eventos nos quais marcam presença chefs do primeiro time da gastronomia brasileira, como Alex Atala, Henrique Fogaça, Janaina e Jefferson Rueda, Flávio Miyamura, Alberto Landgraf e Rodrigo Oliveira, entre outros craques do fogão. (Confira no post logo abaixo, os chefs que vão participar do Arraial Gastronômico do Projeto Buscapé, que começa nesta sexta (20/7) e vai até domingo (22).

"De uma casa improvisada com fogão doméstico, o Buscapé tem hoje um prédio de três andares com instalações adequadas e cozinha equipada com forno combinado", comemora o chef caiçara, atual vice-presidente da entidade. "Com isso, a auto-estima das crianças fica lá em cima", sorri orgulhoso, acreditando que participar voluntariamente de projetos sociais como este, cuja missão é o de formar e ensinar uma profissão, como a de cozinheiro que ele abraçou há menos de duas décadas, pode transformar vidas, fazendo a diferença e gerando bons frutos para muitos jovens.
 
A trajetória de Eudes e de outros chefs de sucesso confirma isso, reforçando que a "corrente do bem" junto aos fogões vale muito a pena.
 
+ VÍDEOS
 
PROJETO BUSCAPÉ





PROJETO COZINHEIROS DA EDUCAÇÃO





(*) MARCO MERGUIZZO é jornalista profissional especializado em gastronomia, vinhos, turismo e estilo de vida. Confira outras novidades no Instagram (@blog 1gole1garfada1viagem) ou clique aqui e vá direto para a página do blog no Facebook.