Blog do Simões

Crítica teatro - A paixão no circo


Crítica teatro - A paixão no circo

O novo espetáculo do Coletivo Cê em parceria com o Circo-teatro Guaraciaba “A paixão no circo”  traz no título a ambiguidade que a montagem se propõe mostrar em cena. De um lado, a apresentação da Paixão de Cristo (a partir do texto Mártir do Calvário) e, do outro lado, a paixão dos artistas pelo teatro. 

O texto de Rogério Guarapiran dialoga com o clássico do circo-teatro “Mártir do Calvário”, conhecido também como “Paixão de Cristo”, baseado no drama sacro-espanhol e escrita pelo autor português Eduardo Garrido, apresentada no Rio Janeiro, em 1901. Um dos maiores sucessos do circo-teatro da primeira metade do século XX. Tamanho o sucesso do texto que era comum, numa cidade de médio ou grande porte, quatro ou cinco companhias de teatro o apresentarem  simultaneamente. As apresentações aconteciam logo após o carnaval (e antes do natal) e sempre lotadas. Teatro popular lotado e em alta no Brasil.
 
Nessa história de sucesso do "Mártir do calvário" não faltam depoimentos engraçados e “causos” envolvendo a montagem. Tal como na apresentação que um menino gritou da plateia: Mãe, Jesus é palhaço. Jesus é o palhaço! Afinal os atores eram os mesmos do espetáculo de circo da outra semana.  Com o passar dos anos a montagem foi ganhando improvisos, cacos e risos, apesar do tema sisudo. O texto de Eduardo Garrido já foi contemporaneamente adaptado outras vezes na cena brasileira. Dentre elas se destaca a montagem do grupo Galpão – Rua da Amargura – feita por Arialdo de Barros e direção de Gabriel Villela.  Um marco na trajetória cênica do grupo mineiro.

Nesta criação de  “ A Paixão no Circo” o dramaturgo Rogério Guarapiran lançou mão do recurso do metateatro, que pode ser definido (de modo ligeiro) como a “peça dentro da peça”.  O autor conta a história de uma companhia de circo-teatro, com atores jovens e velhos, que discutem e enfrentam os dilemas de se manter  em atividade uma companhia de circo-teatro. Estas e outras questões acerca do oficio das artistas são permeadas pela montagem do texto do “Mártir do Calvário”.  Assim, ao longo dessa história são inseridos fragmentos do texto de Eduardo Garrido. Esta construção textual não é fácil, afinal a carpintaria do melodrama tem especificidades e nem sempre o que funciona de um modo, numa dada estrutura, funciona noutro contexto. Esta é a maior dificuldade desta montagem.

A encenação de Fernando Neves busca deixar evidente ao espectador o metateatro. As costuras, entre uma e outra situação dramática, interferem diretamente no ritmo do espetáculo, especificamente, na passagem entre as situações dramáticas e as cômicas. Nalgumas cenas há ausência do exagero, característico do gênero, preenchida pela interpretação realista, resultando numa “fratura” ou “quebra” no ritmo e na própria  organicidade do texto. A encenação 'quase' linear"  não retira a potência da montagem. Propicia outro tipo de reflexão do tema e resulta, por exemplo, na ausência de um “grande final” para o espectador, que titubeia em aplaudir no apagar das luzes.

Porém, tudo se relativiza diante das interpretações vigorosas do elenco e, também, pela proposta do Coletivo Cê e Circo-Teatro Guaraciaba de trazer à cena o tema da paixão pelo teatro representado por duas gerações distintas de artistas de teatro. É emocionante ver em cena Alexandre Malhone, Alexandre Miranda, Bruna Moscatelli, Edimea Rocha, Eliane Ribeiro, Guaraciaba Malhone, Hércules Soares, Hudi Rocha e Júlio Mello. Duas ou três gerações de artistas. Há, aqui, a força do lugar.

Em cena estão o tempo vivido, a poeira de palco, os gestos precisos, os olhares de quem conhece o palco no formato arena e muito mais, em diálogo com o vigor dos jovens artistas. Eliane Ribeiro consegue trazer a leveza e o ar brejeiro à personagem; Edmea Rocha e Guaraciaba estão hilárias. São presenças fortes e marcantes. Assim como é bom ver  em cena a versatilidade de Alexandre Malhone numa interpretação mais contida, com gestos curtos e precisos; Hércules, Bruna e Alexandre Miranda oscilam entre os excessos dramáticos e o realismo propostos pela encenação. Julio Mello, carismático, consegue impor um ritmo crescente e diferenciado à personagem até o desfecho do espetáculo.

Ao final, destaco, a potente interpretação de Hudi Rocha. Hudi traz os cacos e improvisos do circo-teatro no texto de Garrido. O humor no limite. Impossível não rir. Contudo, é no prologo do Ébrio (que  faz parte de outro texto) que se tem a grandeza cênica de Hudi Rocha. A cena do ébrio é forte e ao mesmo tempo delicada. Emociona. Interpretação memorável. O aparte inserido no texto é uma joia. Os espectadores lhe agradecem por nos oferecer esta preciosidade que somente os artistas podem criar em cena. Obrigado Hudi.

Assim o espetáculo “A paixão no circo” cumpre aquilo que se propõe: colocar à mostra a paixão pelo teatro.  Saímos do teatro de algum modo ou outro sensibilizados pelo amor dos artistas pelo teatro. Pela resistência dos artistas que teimam em continuar fazendo teatro. Assim como a lona do circo, localizada nos fundos da Biblioteca Municipal Infantil,   teima em seguir sendo o espaço da resistencia da cena sorocabana. Uma cidade sem teatros, mas não sem artistas de teatro. Verga, mas não quebra.  "A paixão no circo" é teatro sorocabano de qualidade ímpar. Não deixe de assistir.


Diretor: Fernando Neves
Dramaturgo: Rogério Guarapiran

Direção Administrativa e Produtora Geral: Andressa Moreira
Assistente de Direção: Júlio Mello

Elenco: Alexandre Malhone, Alexandre Miranda, Bruna Moscatelli, Edimea Rocha, Eliane Ribeiro, Guaraciaba Malhone, Hércules Soares, Hudi Rocha e Júlio Mello

Músico: Evandro Furlan

Cenógrafo: Jaime Pinheiro
Figurinista/Maquiadora: Luciana Malhone
Aderecista: Felipe Cruz
Light Designer: Túlio Pezzoni

Art Designer: Pêu Ribeiro
Assessoria de Imprensa: Jf Gestão de Conteúdo
Contrarregra: Luciana Malhone
Técnico de Som e Luz: Maurício Matos Caetano
Fotógrafa: Cau Peracio
Videomaker: Gabriel Paixão e Thiago Roma (Corvinho Filmes)

Acompanharam este trabalho participando da criação:
Cenografia
Alessandra Rodrigues
Analigia Rodrigues Amorim dos Santos
Elisa Bianchin de Souza
Francine Trevizan Festa
Mariana Mercadante

Encenação
Dionísio Martins
Louize Mendes
Naiara Flora de Lima

Produção
Bruno Neves Viana
Fabiana Cirino
Fabiana Vieira Luz Nogueira