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Foi-se a Copa. De Volta à Realidade



José Milton Castan Jr.
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Tentei. Solenemente te confesso amigo leitor: eu tentei, e não queria escrever sobre a Copa. Gosto de futebol e até assistia aos jogos. Quase sabia a escalação completa do Brasil! Então como ser original neste oceânico, compulsivo e desproporcionalmente repetitivo momento futebolístico? Assim e tomados em transe, quase todos, pensamos de maneira uniforme, e sabemos o que toda unanimidade representa. Nada eu teria a acrescentar.

Tentei, mas fui abduzido por imponente força! A avassaladora Alemanha.

Mas minha crônica deve começar antes do jogo da Alemanha.

Encontrei dias antes Leléco, um amigo, e claro enveredamos pelo futebol. A discussão daquele momento foi a joelhada de Zuñiga em Neymar. Desfiamos amiúde se foi proposital ou não, e tudo mais. Certo ponto da conversa disse-lhe que a joelhada do colombiano Também acertou em cheio a vaidade nacional, posto que não representava Neymar nossos melhores ideais? Ser imbatível e campeão. E então a mídia declinou infinitas honrarias ao menino Jr., reforçando uma soberania que hora subtraída, demonstrava-se ao mundo (e a todos brasileiros) que se não fôssemos hexacampeões, haveria quem culpar: Zuñiga! Finalmente, eu anunciava: "nos livramos do fardo imperioso".

A joelhada do Zuñiga também expôs uma fratura, dizia eu a Leléco, de um sensível osso e seus ligamentos, quando pela demonstração da fúria raivosa de torcedores com achaques tenebrosos, pelas modernas mídias sociais direcionados à esposa, filha e até o cachorro do jogador, deixando à vista e ao mundo, nossa rala inconsistência humanística.

Uma joelhada que doeu. Doeu pela falta de discernimento entre racional e emocional. Uma falta de critério e principalmente de senso crítico.

Aquela joelhada ofereceu nova oportunidade de irracional discriminação racial, mesmo que antecedida pela faixa na abertura do jogo de não racismo.

Neste ponto Leléco que ouvia calado quase surtou: num moto contínuo repetia e repetia as qualidades de Neymar e tantas outras coisas que eu já havia escutado na televisão. Mal percebeu quando me despedi.

Estava indo para casa quando liguei o rádio e, claro, tome Copa. Felipão insistia dizer que dormia bem, inclusive dentro do helicóptero. Do restante que falou o técnico da seleção, concluo uma mudança de conceito: o que até então era a Copa de um craque com qualidades mágicas e que nos levaria à vitória, agora era candidamente explicado como existindo um grupo de onze jogadores unidos para superar a Alemanha. A joelhada de Zuñiga e seus efeitos colaterais.

Mas quando disse a Leléco que a joelhada de Zuñiga havia acertado em cheio a vaidade nacional, ainda não havia sido o jogo da semifinal contra a Alemanha. Como isso soa agora desproporcional. Não foi a joelhada de Zuñiga que deixou à mostra a fragilidade de nossa seleção, a verdade apareceu no jogo contra a Alemanha, e com isso revelou exatamente onde estávamos, e ninguém ousava mostrar.

Neymar em campo teria o poder de mudar o resultado? Pouco provável! Talvez tenha sido um benefício a ele mesmo não haver jogado. Também não acredito que ainda estejam imputando ao Zuñiga a tragédia nacional.

Foi-se a Copa. Não resisto em novamente falar de Nelson Rodrigues: "toda unanimidade é burra".

Foi-se a Copa e agora de certo está havendo uma enxurrada de digressões, postulados e explicações. Talvez algum amalucado falando de um complô intergalático contra a soberania nacional. Talvez comparações com Maracanã 1950. Teses, teses, teses...

Nada mais nos resta agora senão nos flexionarmos ao Princípio da Realidade, pois a Copa escondia a dura realidade das nossas mazelas e não apenas no campo. É dolorido.

Mas há significativamente o que fazer: Refletir! Humilhados que fomos, desnudados até a última peça, é imperioso refletir, e de vez por todas não mais aceitarmos de bom grado tudo o que nos é apresentado, ofertado com intentos diversos e que não reflita algo próximo a uma verdade.

É na dor que se aprende.

José Milton Castan Jr. é psicanalista e psicoterapeuta.