ARTIGOS

Uma questão de valores


Aquiles tateou por cima do criado-mudo até encontrar o celular: eram duas e quinze da manhã. Meia hora depois, e ainda não havia conseguido pegar novamente no sono. Levantou, foi até a cozinha para esquentar um pouco de leite com canela.
 
Há algumas semanas vinha dormindo mal. Também pudera, pois além dos desencontros na empresa, andava um tanto pensativo, quase melancólico, achando que não fazia muito sentido o seu viver. 
 
Abriu a geladeira e deu-se conta que estava sem leite. Voltou a deitar, mas não deu nem cinco minutos e decidiu sair para comprar o leite. Madruga fria. Enquanto dirigia pensava que aos trinta e tantos anos vivia uma crise existencial, e não sabia o que fazer. No pátio do hipermercado 24 horas, nenhum carro estacionado. Imaginou estar fechado, mas as luzes acesas indicavam o contrário. Olhou no painel do carro: passava das três da manhã. 
 
Aquiles entrou pela porta central, ninguém no corredor. Foi direto à prateleira dos leites, e quando foi checar o preço, a etiqueta estava apagada; ou melhor, lhe pareceu que se apagara naquele instante. Olhou ao lado, imediatamente outra etiqueta piscou, e o preço desapareceu. Mais uma, e mais outra. Por mais que procurasse, todas sem o valor.
 
Pegou uma caixinha de leite, passou pela leitora de barras e apareceu um monte de pontos de interrogação. Decidiu procurar um funcionário, e quando ia chegando à recepção viu o jornal de ofertas, porém, sem nenhum preço. Havia apenas um único caixa aberto e ao aproximar-se foi barrado por um homem alto e forte, que lhe pareceu o gerente. Aquiles contrariado perguntou:
 
-- Por que todos os produtos estão sem preço? 
-- Estamos com um problema! - falou o gerente.
-- Ah vá! - ironizou Aquiles.
-- Não me leve a mal, mas todas as etiquetas perderam misteriosamente o valor. Não há nenhum produto com preço!
-- Mas eu quero comprar apenas uma caixinha de leite.
-- Lamento, não podemos vender!
-- Olha - falou Aquiles - não deve custar mais do que três reais. Tome cinco.
-- Na verdade, não é esse o problema, ocorre que os produtos estão temporariamente sem valores de venda.
-- Que besteira, eu sei quanto vale uma caixinha de leite - falou furiosamente Aquiles.
-- Pois é, não temos mais tanta certeza disso! Esse é o problema!
-- Mas isso é um absurdo. Você está me dizendo que querem colocar o preço em cima do eu acho quanto vale?
-- Isso mesmo, e como não sabemos mais o quanto você está disposto a pagar, não temos como colocar o preço.
-- Pago dez reais numa caixinha de leite - falou o raivoso Aquiles.
-- Percebeu? Você não sabe o valor. Talvez estivesse disposto a pagar uns cinquenta no leite?
-- Não, isso não!!! Seria um absurdo!
-- Viu? Não sabe o valor! - falou o gerente com um sorriso irônico.
-- Mas o correto não seria você verificar quanto pagou para seu fornecedor, acrescentar os custos e margem de lucro? 
-- Imagina! Claro que não. Veja aquele vinho, vendíamos por umas seis vezes mais o preço que pagamos, e isso ia muito além de custos e lucro.
-- Então vou levar o leite, e amanhã eu volto e pago o preço que estiver marcado.
-- Você sempre deixando para amanhã, não é Aquiles?
-- Como você sabe o meu nome?
-- Conheço o seu nome e seu calcanhar, ou melhor, a sua aflição!
 
Longas e estridentes gargalhadas invadiram os ouvidos de Aquiles, que acordou assustado, pois estava na verdade tendo um pesadelo. Levantou, foi correndo até a cozinha e encontrou o leite. Aqueceu com canela, e enquanto tomava ia se acalmando até perceber que seu pesadelo fazia sentido; um supermercado o qual não consegue atribuir valores a seus produtos, não consegue vendê-los. E Aquiles entendeu que ele mesmo não sabe muito bem sobre os seus próprios valores, e talvez ao refletir mais, ficará menos vulnerável aos valores externos, que quase sempre refletem valores de múltiplas finalidades.
 
José Milton Castan Jr. é psicanalista e escritor - www.psicastan.com.br