ARTIGOS

A borboleta preta

Entrou no meu quarto uma borboleta negra. A borboleta, depois de esvoaçar muito em torno de mim, pousou-me na testa. Sacudi-a, ela foi pousar na vidraça; e, porque eu sacudisse de novo veio parar em cima de um velho retrato de meu pai. Era negra como a noite. Minutos depois senti um repelão nos nervos, lancei de uma toalha, bati-lhe e ela caiu.   Não caiu morta, ainda torcia o corpo e movia as farpinhas da cabeça. Apiedei-me; tomei na palma da mão, a infeliz expirou. Fiquei um pouco aborrecido, incomodado.   -- Também por que diabo não era azul? Disse comigo.   Mas, por que a Borboleta Preta de Brás Cubas, relatada em suas Memórias Póstumas, veio pousar nesta crônica de hoje?   Ocorre que lendo a edição do Cruzeiro de sábado retrasado, estavam juntados na página A2: Dr. Steffen, Prof. Aldo e Dr. Carlos Hübner. Que feliz associação! Os dois articulistas titulares (Steffen e Aldo) trataram, com primor habitual, das ideias que lhe vinham penduradas no trapézio, e numa coincidência, fizeram referências a Quincas Borba, personagem filósofo sandeu que surgiu inicialmente nas Memórias Póstumas de Brás Cubas. Apropriadamente alocado na mesma página A2, e de acordo com a premência do assunto, o psiquiatra Dr. Carlos Hübner nos alertava sobre o fechamento do Caps (Centro de Atenção Psicossocial) do Trujillo, por falta de verbas. Aí, não deu para deixar de pensar nas Borboletas Pretas, e porque não nasceram azuis, são pinchadas pra longe: os pacientes portadores de doenças mentais.   O Prof. Aldo em seu texto, finalizava com:   "... por que um ser humano não poderia operar mudanças para melhor, na sua vida interior, ultrapassando as camadas rançosas do próprio ego?"   Obrigado professor pela deixa; é por essas paragens que todos tendemos a caminhar: em nossas transformações diárias. E claro, é nisso que nos ocupamos - os psicoterapeutas, com nossos pacientes/analisandos e suas transformações. Porém, pode haver limites para essas transformações, mas ainda assim, e de certa forma, nossos pacientes/analisandos têm sob sua tutela a possibilidade da escolha.   Mas nossos pacientes/analisandos, em boa medida, não são os portadores de doenças mentais e nem usuários do Caps. O que é trágico, grave e funesto, é que para os pacientes portadores de doenças mentais não há escolha: eles não escolhem:   Não optaram em serem doentes mentais!   Pense você leitor, enclausurado num cubículo, sem a capacidade de decidir, sem o poder de virar a chave, destrancar a porta, sair e viver a vida. Não há escolhas! Um cativeiro, um escravismo das disfunções e desorganizações mentais/psiquiátricas. Pobres borboletas pretas, por que não nasceram azuis?   Viviam na Narragônia - a terra dos loucos, e foram para lá levados pela Nau dos Insensatos, que percorria os grandes rios e ia recolhendo os loucos; assim nos dizia o conterrâneo do Dr. Steffen, o poeta alemão Brant. Vivem agora, alguns e ainda, nos hospitais psiquiátricos. Os que de lá foram retirados; ou vivem em rareadas residências terapêuticas, ou dependem do Caps. Mas, Caps fora, que se virem..., nas ruas. Pobres borboletas pretas, por que não nasceram azuis?   O Cruzeiro neste sábado passado deu merecido destaque ao tema, que ganhou o editorial: "Idas e vindas da saúde mental": "o problema é que... esqueceram dos portadores de doenças mentais e seus familiares" - finalizava o editorial.   Pobres borboletas pretas, por que não nasceram azuis?   Gostei especialmente de uma das ideias que o Dr. Hübner apresentou no seu texto, como solução para a falta de verbas: "vendam o Pão de Açúcar para os chineses!". Mas atenção senhores do Estado: Foi uma brincadeirinha do Dr. Hübner: vai que algum alienado decida mesmo vender!   Pobres borboletas pretas, e porque não nasceram azuis...   José Milton Castan Jr. é psicanalista e escritor - www.psicastan.com.br