OUTRO OLHAR

Da grande utopia à câmara de horrores


Carlos Araújo

Se há um ano que verdadeiramente não terminou, ele é 1917. E não terminará jamais. Outubro de 1917 na Rússia surpreendeu o mundo com uma revolução que, 100 anos depois, continua a desafiar a capacidade de compreensão das novas gerações. Não há um único olhar que possa decifrar os acontecimentos que levaram Lênin (Vladimir Ilych Ulyanov) ao poder.

O viés ideológico determina qual o caminho a seguir na variedade de interpretações sobre Lênin, a Revolução Russa e suas influências em todo o mundo. As contradições entre utopia e realidade atropelam todas as análises.

Os críticos dos bolcheviques liderados por Lênin esquecem que em 1917 a Rússia era um país agrário, atrasado, território castigado pela fome e governado com mão de ferro pelo czar Nicolau II. Algo tinha que acontecer para subverter essa ordem de terra devastada.

Em contrapartida, os que fizeram a apologia da revolução ignoraram que ela traiu os seus ideais utópicos, usou a fome como arma de opressão, massacrou inimigos e criou um Estado totalitário com um legado que pode ser comparado a uma câmara de horrores.
Toda revolução tem uma data marcante. Há 100 anos, na Rússia, esse dia foi o 27 de outubro. Mas toda revolução, longe de ser uma unidade fechada em 24 horas, desdobra-se em outros conflitos, precedentes e posteriores.

Na Rússia, a primeira revolução daquele período ocorreu em 1905, com registros de muitas greves, povo na rua, repressão e milhares de mortes. Em fevereiro de 1917, nova onda de protestos culminou com a queda do czar. Seguiu-se um governo provisório até outubro, quando Lênin tomou o poder e inaugurou o que prometia ser uma nova era de governo.

Seguiu-se uma guerra civil de quatro anos que causou 800 mil mortes em combate e deixou uma estimativa de mais 8 milhões de mortos por frio e fome. O governo criou a Tcheka, polícia secreta com o poder de entrar na casa de adversários do regime e sequestrá-los. Muitos só voltaram anos depois. Outros jamais retornaram para casa.

Lênin governou a Rússia de outubro de 1917 até 21 de janeiro de 1924. Entre suas medidas de governo, expropriou terras da Igreja e da nobreza e as redistribuiu entre os camponeses, limitou a jornada de trabalho a oito horas diárias, lançou um plano de educação e alfabetização, criou leis para garantir direitos iguais às mulheres, domou a inflação. Um ataque de AVC o matou. Entrou para a história como um ícone da revolução.

Josef Stalin (feito de aço em russo), o sucessor, se equiparou a Ivan, o Terrível, outro líder que consolidou a Rússia como uma nação de destinos trágicos. Também houve outros tiranos: Pedro, o Grande, Catarina, a Grande, e a dinastia dos Romanov. Stalin transformou um país agrário em superpotência. Construiu campos de trabalho forçado, comandou massacres e condenou milhões de pessoas à morte pela fome.

Desde 1922, o Estado era constituído pela União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS). A Ucrânia, uma dessas repúblicas, destacava-se por prosperidade, autonomia cultural e resistência de seus agricultores. Esse perfil contrariou Stalin. Em represália, ele vetou a compra, troca ou venda de alimentos aos ucranianos. Privou de comida o povo daquela região. Eram os anos de 1932 e 1933. A medida significou a condenação de ao menos 5 milhões de ucranianos a morrer de fome. O episódio entrou para a galeria das catástrofes humanas como o "holocausto ucraniano".

Stalin morreu em 1953. Em 1956, no 20º Congresso do Partido Comunista da URSS, o então líder soviético Nikita Kruschev denunciou os crimes de Stalin. Era 14 de fevereiro, no Kremlin, a sede do governo soviético. Num discurso de cinco horas, Kruschev descreveu o governo de quase 30 anos de Stalin como um período marcado por abusos de intolerância e de brutalidade.

Kruschev acusou Stalin de ter mandado milhões de pessoas para os campos de trabalhos forçados, os Gulags, e executado 98 dos 139 membros do Comitê Central do Partido Comunistas eleitos em 1934. Assassinou muitos dos chefes militares do exército e sentiu falta deles quando precisou organizar as forças militares para enfrentar a invasão dos nazistas em 1941. Expulsou e matou Leão Trotsky, um dos líderes da revolução de 1917.

Entre os escritores, por responsabilidade direta de Stalin, tornaram-se escandalosos os assassinatos de Máximo Gorki e Isaac Babel. Incontáveis livros foram proibidos. Vários autores só conseguiram publicar obras com o envio de originais para o exterior, como o Nobel de Literatura Boris Pasternak, autor do clássico Doutor Jivago.

Kruschev foi o líder soviético que, ao denunciar os crimes de Stalin, abriu a caixa preta da União Soviética. O fato de Stalin ter feito a diferença na derrota de Hitler durante a Segunda Guerra Mundial não o absolveu dos seus crimes.

O legado do ditador soviético criou uma nova onda de niilistas em todo o mundo. Pessoas comuns que aderiram às utopias de 1917 sentiram-se traídas pelo stalinismo. Como saída existencial, muitos, entre os abatidos pela amargura moral, decidiram sair de cena e não acreditar em mais nada.

Extinta em 1991, a URSS, embora seja página virada, ainda causa assombros. Hoje, nada mudou. Vladimir Putin posa como um novo czar. A Rússia continua um território habitado por "almas mortas", como descreveu Nicolau Gogol. Triste Rússia.

Triste é o mundo. Não restaram nem as utopias.