OUTRO OLHAR

A Justiça segundo Kafka


Numa época marcada pela dúvida e a desconfiança como armas de interpretação da realidade, o que mais chama a atenção é a certeza com que grupos à esquerda e à direita lutam para fazer valer as suas verdades.

Um círculo de fogo é provocado pelo choque de contradições. Ninguém se entende. Instaura-se o clima de ódio que converte as redes sociais em campo de batalha. Que destrói amizades. Que resvala para o desencanto e a indignação.

Certamente esse quadro de fratura da realidade não é originado de forças da natureza como o terremoto, a tempestade, o furacão. Criaturas humanas estão no centro das feridas abertas e fechá-las parece ser tarefa impossível.

A desconstrução dos ideais de progresso e proteção social passa pelos desgastes do Executivo e do Legislativo. Corre-se para o Judiciário, notadamente na figura do Supremo Tribunal Federal (STF), a mais alta corte da Justiça brasileira, a última trincheira no equilíbrio das instituições. Mas também aqui o cidadão depara com dúvidas que o levam à sensação de total desamparo.

Nos corredores dos tribunais e de outros centros e poder, repete-se o mantra de que "decisão judicial não se discute, se cumpre". Há quem discorde, sem medo de ser acusado de desobediência civil. Até porque, decisão judicial também gera dúvidas e nem sempre esclarece todos os pontos de uma questão. Tanto isso é indiscutível que há margens para recursos, embargos, contestações diversas. Se a própria ideia de verdade é relativa, tudo é relativo.

Essas questões afloram no desafio cotidiano de interpretar a realidade brasileira com rumos cada vez mais ditados pela Justiça como instituição de poder. A política perdeu autonomia para a judicialização. Nos municípios, pendências são submetidas aos tribunais, que acabam por determinar o veredito final. No âmbito do País, o STF é a última esperança. E nem por isso a dúvida deixa de persistir.

Sobre essas inquietações, o professor de direito constitucional da USP, Conrado Hübner Mendes, contribui com a avaliação de que, assim como o Executivo e o Legislativo, o STF também reúne características que fazem dele "protagonista de uma democracia em desencanto". Em contundente artigo com o título "STF, a vanguarda ilusionista", publicado na Folha de S. Paulo (Ilustríssima, págs 4 e 5) de domingo passado, Mendes analisa: "Os lances mais sintomáticos da recente degeneração da política brasileira passam por ali (STF)."

O raciocínio do professor se ampara em questões como a de políticos denunciados por corrupção em Brasília, que detinham as mesmas prerrogativas parlamentares, e pergunta por que, diante das evidências de crime, receberam tratamento diferenciado. Também considera se o auxílio moradia para juízes, criado em 2014, custa ao país mais de R$ 1 bilhão por ano, como pôde um ministro da corte impedir que o plenário se manifestasse até este momento. Há outras perguntas, igualmente críticas ao STF.

A resposta de Mendes tem o efeito de um soco no estômago: "Ao se prestar a folhetim político, o STF abdica de seu papel constitucional e ataca o projeto de democracia." Ele também constata: "É um tribunal que se autorregula e não responde a ninguém. O que justifica tanto poder e a imunização contra canais democráticos de controle?"

Mendes admite que a análise jurídica não responde a essas questões e acredita que esse papel cabe à arte. De fato, quando o homem não dá conta de suas dores, recorre à arte como válvula de escape.

O escritor tcheco Franz Kafka é o nome mais lembrado nessa hora. Com o romance "O processo" e o conto "Diante da lei", ele traça um papel sombrio da Justiça. No primeiro caso, um homem é preso sem saber o motivo e, quanto mais faz perguntas para entender o que se passa, mais se afunda em acusações. Na segunda história, um homem passa toda a vida na luta por acesso à Justiça e a frustração é indescritível. Nos dois casos, seja no labirinto de Kafka, no Brasil ou em qualquer parte do mundo, qualquer semelhança com a realidade não é mera coincidência.

Na sofisticação da arte como na aridez do mundo real, o perigo é que o grau de responsabilidade das instituições possa abrir espaços para o surgimento de forças capazes de transformar os brasileiros em personagens de Kafka.

Tudo isso é muito triste num país que ainda tem energia para o Carnaval. Pão e circo, eis a questão. A casa-grande vibra enquanto a senzala se diverte.