OUTRO OLHAR

Silêncio na sala de espera


Carlos Araújo
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 - ARTE: LUCAS ARAÚJO - ARTE: LUCAS ARAÚJO

O toque do celular despertou Zé Capela às quatro da manhã de uma segunda-feira de abril. Por um instante, não conteve o sobressalto. A expectativa de notícia ruim acelerou o ritmo cardíaco. Impossível conter a ansiedade. Ligação fora de hora assustava. Coisa boa não pode ser, pensou.

-- O Zé da Areia morreu -- disse Maria Dea no celular.

Maria Dea era a mulher de Zé da Areia, e este era o melhor amigo de Zé Capela. Amigos de infância, de escola, de brincadeiras na rua, de juventude vulcânica, de destinos cruzados.

No velório, Zé Capela demorou para se aproximar do caixão. Parado na entrada da sala, aguardou um, dois, três minutos. Só então deu os passos necessários para percorrer a distância entre a porta da sala e o cadáver do amigo.

Contemplou-o em silêncio. Não havia o que dizer. Era como se as palavras se extinguissem ou perdessem o sentido. Nada que pudesse ser dito serviria de consolo para a família.

Não soube quanto tempo ficou diante do caixão. Talvez dois minutos. Ou três. Tempo suficiente para recordar bons momentos compartilhados numa longa amizade: jogos de várzea, namoradas, comemorações, conversas sobre a vida e a morte.

Voltou-se, dando as costas ao falecido, e refugiou-se num canto da sala.

Entre os familiares e amigos, identificou Maria Dea. Viu Maria Josefa e Maria Conceição, ex-mulheres do morto. Inimigas entre si, nessa hora era como se as três mulheres, embora à distância, tivessem feito uma trégua em homenagem a Zé da Areia.

Zé Capela viu se aproximarem do caixão outras pessoas que tiveram todo tipo de vínculo com o morto. Um devia dez mil reais, outro brigara com ele e não tivera tempo de fazer as pazes, e um terceiro havia lhe rogado a praga de que ia morrer sem ter visto o seu time campeão da Libertadores.

Essas criaturas se aproximavam, contemplavam o rosto do morto e se afastavam, num ritual que podia parecer ensaiado.

O culto aos mortos tem uma relação muito próxima com o teatro, pensou Zé Capela, observando a movimentação na sala.

O que mais chamava a atenção era o silêncio. A ausência de ruído era como uma trilha sonora às avessas. Não havia marcação de cena, câmera, diretor, nada disso. Mas era como se cada um cumprisse o seu papel num filme imaginário sobre perda e tristeza.

Cada um (inclusive o morto) cumpria o seu papel. Cada indivíduo tinha funções que se revelavam naquele cenário. Os olhares trocados pelas três mulheres da vida de Zé da Areia era um exemplo. Elas se entreolharam como se estivessem diante do desafio de disputar graus de importância na vida de Zé da Areia. Nesse quesito, Maria Dea saía na frente porque estivera com ele nos momentos finais, mas as outras duas mulheres não concordariam com esse critério de avaliação.

Zé da Areia não deixou filhos. Melhor assim. Ao menos não havia descendentes. Isso o credenciava a ter dito uma crueldade, como disse Brás Cubas por meio de Machado de Assis: "Não tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura o legado da nossa miséria."

E o corpo continuava lá, no meio da sala. De repente, alguém leu um poema. Um rapaz apareceu com um violão e musicou a letra. Um estranho discursou com carga de elogios. Soube-se que este último percorria todos os velórios e repetia o mesmo discurso aos falecidos, fossem homens ou mulheres. Adaptava o conteúdo a cada situação, apenas alterando os nomes. Era com essa peregrinação fúnebre que ele aproveitava as oportunidades para tomar cafés e lanches de graça servidos em salas de velórios.

Lá pelas tantas, a movimentação diminuiu até ao ponto de não haver mais ninguém ao redor do caixão. Zé Capela, no seu canto, teve pena da solidão do amigo.

Nesse clima, os visitantes ocupavam-se com o que fariam após o sepultamento. Queriam saber se ia chover, se o trânsito em determinado caminho estava fluindo bem. Era como se o morto não fizesse parte do foco de interesse dos vivos.

Pior ainda, muitos começaram a ir embora. Nem se despediram de Maria Dea. Maria Josefa e Maria Conceição também chisparam.

Num instante, Zé Capela também não viu nem sinal de Maria Dea. Ela acabava de sair e não voltou mais.

Na hora do sepultamento, um funcionário do velório fechou o caixão. Só Zé Capela estava presente. E só ele acompanhou o corpo ao cemitério.