ARTIGOS

De médicos reais e médicos inventados


Edgard Steffen

"Nosso trabalho é manter as pessoas vivas, não dizer a elas como viver."
(Dr. Leonel Gillespie para Dr. James Kildare)

Aos nascidos na primeira metade do século passado, que tivessem a felicidade em alcançar um curso superior, as opções oferecidas restringiam-se quase somente à Advocacia, Engenharia, Farmácia, Medicina e Odontologia. Às nascidas, nem isso. Às que escapavam da condenação aos trabalhos domésticos, eram ofertadas Ensino Primário e Enfermagem. Para os dois sexos havia outras carreiras, mas nada parecido com a multiplicidade atual.

Às vezes, pego-me conjecturando sobre fatores que me levaram à profissão médica. Um deles, o exemplo dos médicos que conheci desde a infância à adolescência. Testemunhei a veracidade do aforismo hipocrático Sedare dolorem Divinum opus est*. Quando um médico da família vinha atender minha mãe, minha irmã Zilda ou meu tio Carlos Oscar, sua presença dissipava nuvens escuras pairadas sobre o ambiente. O resultado sobre a dor física poderia até ser pequeno, mas seu efeito sobre a dor moral, sobre o estado de espírito do doente e da família, era notável. Aqueles senhores bem-vestidos, atenciosos, seguros no falar pareciam emissários do Eterno. Recebiam honras da casa expressas no preparo de bacia com água, sabonete novo, toalha limpíssima e cafezinho de coador, feito na hora na cozinha da casa.

Sou do tempo em que doutores eram bonzinhos. Na vida real e na ficção. Descontadas exceções para confirmar a regra, ainda o são. Não precisavam ser um Alberto Schweitzer, médico, organista e pastor, vencedor do Nobel da Paz, 1952. Podiam ser um daqueles clínicos da literatura, como Andrew Manson concebido por Archibal J. Cronin (em "A Cidadela") ou Eugênio saído da pena de Érico Veríssimo (em "Olhai os Lírios do Campo"). Ambos idealistas que, na maturidade profissional, foram contaminados pela medicina do enriquecimento.

Cronin pode ter me influenciado. Também era médico. Com avidez, li seus principais livros. Sua obra inspirou muitos jovens a cursar a Medicina.

Quando a TV criou Dr. Kildare (1961/65), Dr. Ben Casey (1961/66) e Dr. Marcus Welby (1969/73) eu já estava em plena atividade pediátrica. Todos gente boa. Profissionais éticos envolvidos com doenças ou pacientes difíceis. Investiam no bom relacionamento médico-paciente para chegar ao diagnóstico e solucionar os casos. Marcus Welby MD em especial. Do sucesso dessas séries, vieram outras. Abordavam conflitos na vida hospitalar, mas eram bem diferentes das séries atuais. Nestas, o diagnóstico passou a ser calcado mais nos exames subsidiários de alta tecnologia que na relação médico-paciente. Os "bonzinhos" substituídos pelo atrabiliário, agressivo e competente Dr. House.

O diploma e a consequente licença para exercer a profissão custaram-me muitas noites de vigília, estresse, suor e só não cito lágrimas porque estas não eram apanágio dos homens. As derramei ocasionalmente. Amei minha profissão e dela me orgulho. Tive meus dias de Welby e House. Competência e paciência dentro do possível. Deixei de atender, mas não deixei de ser médico. Mantive, e mantenho, meu CRM. Continuei na Saúde Pública até a compulsória me jogar para o ócio definitivo.

A idade provecta permitiu-me presenciar o enorme progresso na arte de curar. Mas não me poupou assistir ao desprestígio da profissão no sistema público. Sucessivos governos, querendo fazer "justiça" à nossa custa, deram aumentos menores às profissões que ganhavam mais. O crescimento do consumismo, fez o sonho do emprego único virar pesadelo. Médicos jovens obrigados a buscar sustento exaurindo-se como saltimbancos malabaristas de horários, endereços e instituições. Muitos conseguem cumprir a maratona. Alguns -- minoritários, felizmente -- mais se assemelham ao Dr. Richard Kimball da série "O Fugitivo". Topam qualquer emprego e nunca são encontrados no local do trabalho.

(*) Aliviar a dor é obra divina (Hipócrates)

Edgard Steffen é médico pediatra e escreve aos sábados neste espaço - [email protected]