'Sujou o tênis, eu lavo. Deixou bagunça? Eu arrumo'
Luiz Fernando Toledo
[email protected]
programa de estágio
A voz pausada e rouca de Adriana soou por mais de uma hora. Confiante, e acima de tudo, entonada com orgulho pela história que contava. De sua casa, um espaço humilde situado em um morro de difícil acesso na Vila Astúrias, após uma longa escadaria que parte do bairro de Brigadeiro Tobias, ouviam-se palavras simples, mas irretocáveis, da mulher que tomou uma imensa responsabilidade para si, há um ano: assumir a guarda de cinco crianças que foram separadas da mãe, presa em 2011.
Foi tudo muito rápido e os fatos passaram por Adriana sem que ela nem tivesse muito tempo para refletir. Viviane, mãe biológica de cinco filhos: Diego (15 anos), Eduardo (13), Talita (9), Leonardo (7) e Thainara (2), e vizinha de Adriana, envolveu-se com um presidiário durante alguns meses. Fora apresentada ao homem por intermédio de uma colega. Para agradá-lo, tentou levar drogas para ele, tentando escondê-las nas vestes em uma visita, e acabou flagrada pelas autoridades. Não deu tempo nem de se despedir dos filhos, que só ficaram sabendo da noticia pela própria Adriana. "Eu recebi uma ligação, e fiquei chocada. Logo fui avisar o Diego, que é o mais velho entre os cinco filhos dela", contou. A prisão ocorreu em um sábado, e por duas noites os cinco dormiram sem ninguém para acompanhá-los.
"Apesar de gostar de todos eles e termos uma convivência no dia a dia, eu não queria me envolver, no começo", relata Adriana. Mas partia-lhe o coração vê-los "jogados", sem nenhum cuidado. Mãe de um rapaz de 18 anos, Maurício, sentiu que os instintos maternos lhe apertavam a consciência. Enquanto pintava as massas de biscuit que produz para vender, em frente à sua casa, ela observou Diego e Eduardo sem rumo, andando pelo morro, e logo fez uma oferta: "por que vocês não vêm tomar café comigo?". Sem pestanejar, os meninos logo foram.
Preocupada em deixá-los sozinhos, Adriana ligou para seu marido Eliel, que trabalha como mecânico, e estava na oficina no momento. "Não posso permitir que eles fiquem lá, Eliel. Vou trazê-los pra casa", afirmou ao cônjuge, que logo concordou, sem apresentar barreiras. O Conselho Tutelar alertou Adriana que só poderia cuidar deles se fosse em sua própria casa. "Fiquei um pouco assustada no começo, mas costumo dizer que me sinto privilegiada por poder ajudá-los", afirmou a mulher.
Um oficial da justiça visitou o casal, e disse que em breve viria buscar as crianças, para que o juiz decidisse para onde elas iriam. Eduardo não conseguia parar de chorar com a notícia. Já Diego cogitava fugir, mas sabia que não daria certo. Adriana desesperou-se: "o morro sem essas crianças vai ser um deserto pra mim. Eles não podem ir, vão acabar separando os irmãos". A decisão do juiz amenizou o quadro: baseou-se no vínculo que a família já havia criado com os cinco irmãos: Adriana obteve a guarda provisória das crianças, e alguns meses depois, veio a definitiva.
De tão extasiado, o casal quase não se preocupava com a complexidade de sustentar a nova família, que agora era composta por oito pessoas. Buscaram se virar como podiam. Nas primeiras semanas, o irmão de Adriana, Reinaldo, emprestou dois colchões que possuía. Não era suficiente para abrigar todos, mas não se importaram: dormiam todos na cozinha. Dois irmãos chegavam a dividir um colchão de solteiro.
O filho de Adriana, Maurício, apoiou a família em tudo, desde o início, até mesmo com as cestas básicas que recebia em seu serviço. "E quando me perguntam quem são esses moleques, eu digo com orgulho: são meus irmãos". Maurício e os irmãos sempre foram muito apegados, mesmo antes de morarem juntos. As duas famílias, como um todo, se viam com frequência, e como eles não tinham um pai, costumavam trazer presentes para Eliel no dia dos pais. Mal sabiam que viveriam juntos, em tão pouco tempo.
"Vamos levar todo mundo pra comer na festa junina?"
Adriana conta que a vida dos cinco irmãos melhorou significativamente, em alguns pontos. Mesmo vivendo às custas de doações, ajuda do Bolsa Família, cesta básica do filho de Adriana e de conhecidos, a rotina dos irmãos parece ter mudado bastante em relação a que tinham. Ela admite que o amor de mãe possa fazer muita falta aos meninos, mas percebe, pelo que eles mesmos costumam dizer, que tudo melhorou, num sentido geral.
Certa vez, Diego comentou: "Dri, agora que a gente é rico, poderemos levar todo mundo pra comer na festa junina", referindo-se à festa sediada pela pastoral do bairro. Foi a frase mais repercutida entre eles durante semanas, em tom de piada. A ironia nunca fez um sentido tão agradável quanto na frase do jovem. Para Diego, antes seria impossível a façanha de comer qualquer coisa na festa junina. Ele ia com os irmãos apenas para ficar observando os outros comerem, e sonhar com o dia em que teria essa oportunidade.
"Eu só quero ajudar. Mas sei que o amor de mãe prevalecerá no final. E se eles quiserem voltar, eu não direi que não"
Não bastassem os cinco filhos que acolheu, Adriana ainda fez questão de trazer os três cães que Viviane tomava conta. "Estrelinha", o xodó das duas famílias, era sempre mencionada nas cartas que a mãe das crianças enviava da prisão: "Vocês estão cuidando bem da minha estrelinha?", indagava. O único contato dela com os filhos acontece por meio de textos, já que o contato pessoal é improvável: está em uma cadeia localizada a mais de 140 quilômetros de distância. Com a distância, a identidade familiar com a mãe se enfraqueceu. Sentiriam falta da mãe? Os meninos preferiram não comentar muito a respeito, mas seus olhares e expressões entregavam um sentimento latente, que se desfez em uma ligeira frase de Diego: "acho que sim, mas depois do que ela nos fez, é difícil dizer".
Mas seriam capazes de perdoá-la? Antes mesmo que pudessem se manifestar, o marido de Adriana comentou: "É claro que sim. A mãe dessas crianças também é um ser humano, e pode errar como qualquer um." E a esposa reforçou: "eu só quero ajudar. Mas sei que o amor de mãe prevalecerá no final. E se eles quiserem voltar, eu não direi que não", comentou baixando a voz. O consentimento dos irmãos às afirmações de Adriana e Eliel ocorreu pelo olhar e um breve aceno com a cabeça, mas não puderam verbalizá-lo pela emoção que o assunto parecia lhes causar.
De uma forma ou de outra, a segunda mãe dos irmãos não esconde o medo de perdê-los. "Quando vejo estas crianças quietas, no quartinho, comendo pipoca e assistindo televisão todas juntas, eu simplesmente começo a chorar. Eu tive que fazer o que fiz. Jamais aceitaria vê-las separadas. Somos muito apegados agora", contou. O desfecho dessa história não seria assim tão simples. A pequena Thainara, que completará três anos em junho, interrompeu a conversa com a reportagem insistindo com Adriana: "mãe, quero tetê", apontando para a mamadeira. Nem Dri, nem Adriana. Mãe.
Uma oportunidade para recomeçar
Viviane e seus filhos já foram notícia nas páginas do Cruzeiro do Sul. Em 13 de junho de 2009, a repórter Maíra Fernandes denunciava a dura realidade vivenciada por eles, quando num frio de 10 graus, conforme dizia o texto, as crianças sequer podiam ir até a escola. O filho Leonardo, à época com apenas quatro anos, abria a matéria com um pedido: queria ganhar tijolos para tapar todas as frestas nas paredes de sua casa, responsáveis pela entrada de ar frio. Não havia roupa suficiente para agasalhá-los, nem ao menos um tênis para calçar os pés gelados de Leonardo. Um berço branco aguardava a chegada de um novo membro da família: Thainara. Pelo resto do ambiente, vasilhas espalhadas buscavam minimizar o efeito das chuvas, que também pelas frestas, faziam estrago na moradia da família.
Com a mobilização de vizinhos, de professores da Escola Estadual "Izabel Rodrigues Galvão", onde os meninos estudavam e também por meio da repercussão que a matéria jornalística trouxe, Viviane recebeu roupas, brinquedos, e os reparos necessários para a casa. Temporariamente os problemas estavam sanados. Só o tempo foi revelar que eles voltariam : três anos depois, Adriana e seu irmão contam que a mãe das crianças não soube administrar as doações que recebeu. "Ela dava roupa pra todo mundo, vendia, não sabia o que fazer com o que ganhou. Alguns meses depois, já estavam todos passando frio e fome outra vez", lamentou.
"Entendo que de toda essa história, fico feliz que todos eles crescerão e serão boa gente. Estão todos encaminhados", pontua Adriana. "Mais do que isso, quando a mãe deles sair da cadeia, eles é que vão ensiná-la como viver melhor, e como fazer as coisas direito", admite com orgulho. Para o marido, Eliel, eles têm tudo que precisam para trilhar um caminho do bem: "estão estudando, tiram ótimas notas e são caseiros, não gostam de arruaça", conclui.
"O segredo é sempre estar ao lado delas"
Para esta família, a boa educação não vem do luxo ou da riqueza, mas da própria relação entre os membros: "Acho que o segredo para educar bem estas crianças é que eu estou sempre do lado deles. Não adianta ficar gritando e sendo mandona. Se eles aprontam hoje, eu corro atrás. Sujou o tênis, eu vou lá e lavo. Deixou bagunça? Eu arrumo. Um dia eles tomam juízo e fazem isso por eles mesmos, mas agora eu tenho que dar o bom o exemplo", argumenta Adriana. Ela conta que, apenas em um sábado, chegou a passar seis horas seguidas lavando roupas dos oito membros da casa. Mas com tanto empenho, o respeito é mútuo: ao saírem de casa, ou simplesmente em um gesto esporádico, cada um de seus filhos lhe dá um beijo na bochecha e agradece pela oportunidade que ela proporcionou. A mãe, não de sangue, mas de coração, fechou: "Disseram que foi loucura o que eu fiz, e até hoje alguns reafirmam, Mas loucura mesmo seria ter abandonado essas crianças quando ela mais precisavam de mim".
(Supervisão: Helena Gozzano)